Os peixes morrem
pela boca. E eu também. Mas de um jeito diferente. Nada tão romantizado como um
beijo, muito menos simples como a fala. Foi só uma vez, eu juro!
- Ele se foi.
Ela saiu feito
louca do quarto e eu fiquei alguns segundos sem me mexer. Eu poderia ter ido
atrás, poderia ter gritado, me afastado da mulher seminua agarrada em mim. Eu
poderia ter dito que a amava antes que fosse tarde demais.
Mas não.
- Você é um
idiota.
- Eu sei.
E eu sabia. Que
era um idiota, mas não de onde havia surgido aquela voz.
- Você está morto.
De novo.
- Oi?
- Ah, certo você
não se lembra. – A voz era de uma mulher. Mas poderia ser de homem. Eu estava
deitado, mas se eu estivesse sentado também não faria diferença. Alguma coisa
estava muito errada. – Vamos refrescar sua memória.
Eu ouvi um estalar
de dedos que poderia muito bem ter sido o som de uma bomba e uma luz forte
obrigou meus olhos a se fecharem. E eu nem sabia que estava no escuro.
Aquele era eu.
Usando roupas que não eram minhas, falando numa língua que não era a minha, com
uma voz que definitivamente eu não tinha. Mas era eu, certeza.
Ainda sem entender
o que acontecia, eu vi a mim mesmo brigar com uma moça. Não entendia nada do
que era dito, mas arregalei os olhos quando ela segurou um punhal a sua frente
e caminhou para o meu lado. Como quem pede desculpas, dei dois passos para trás
e fiquei encurralado entre a parede e a mulher.
Em algum momento
deixei de ser apenas um observador e passei a ser o protagonista da cena.
Quando ela falou que ia se vingar de mim por ter me engraçado com outra eu
entendi, mesmo sendo um idioma estranho.
E quando ela
esfaqueou minha barriga, eu senti a dor do sangue saindo do meu corpo como se
fosse eu. Mas não era. Ou era?
- E essa foi só a
primeira vez. – A voz andrógina novamente. Os últimos flashes de dor ainda percorriam
meu corpo e eu rezei para mais uma dose. O que não veio.
- O que... – Tossi
e levei a mão aos meus lábios, achando que saiu sangue como acontece nos filmes
em que alguém é esfaqueado. – O que foi isso?
- Você. Sendo
morto.
Eu apenas
continuei encarando o que quer que estivesse a minha frente. Quase ouvi o som
dos meus cílios batendo uns contra os outros.
- É normal não
entender no início. – A voz era feminina, eu decidi. – Não pelo timbre em si,
mas pela entonação. E pelo ódio que escorria das palavras, também. – Mas eu explico.
“Ao longo da sua
vida espiritual, você morreu algumas vezes. 99, para ser mais exata. Por
cometer o mesmo pecado.”
- Pecado?
- É. Luxúria,
fetiche, adultério, chifre... Escolha o nome que quiser. O nome que você
escolhe dar não muda os fatos: você morreu agora, assim como morreu inúmeras
vezes antes, pelo mesmo motivo: traição.
- Como... – Eu não
sabia nem o que eu queria perguntar, então escolhi o silêncio. Deus! Como eu
precisava de mais uma dose!
- Eu te mostro.
As roupas eram
ridiculamente feias. Babados e estampas exageradas e uma meia que ia até os
meus joelhos. Quando me virei, tentando entender onde eu estava, quase
desmaiei.
Jesus amado, eu
estava usando uma peruca!
E o espelho era
ovalado, a moldura parecia ouro de verdade, formando desenhos intrincados.
Uma mulher entrou
no quarto e me deu um beijo longo, profundo, antes de me puxar pela mão até um
salão bastante enfeitado.
- Um baile!
- Claro, gênio! –
Ela sorria, mas havia algo de errado com seu sorriso enquanto ela me entregava
uma taça de vinho. Eu virei tudo de uma vez só e não demorou muito para sentir
que meu estômago pegava fogo.
- Veneno.
A cena mudou e
agora eu encarava uma jovem com cabelos quase brancos que apontava uma arma
para mim.
- Bala de
revólver.
Depois eu me vi
num leito de hospital com um braço ligado à um tubo intravenoso. Alguém injetou
algo no tubo antes de tudo escurecer novamente.
- Dose errada de
remédio. Ou não... – A voz anônima era pensativa – Não é “errada” se foi de
propósito...
Eu andava pela rua
quando gritos soaram. Quando olhei para o lado, algo imenso me atingiu.
- Atropelamento.
Enquanto as cenas
iam mudando e a pessoa ia citando todas as formas diferentes pelas quais eu
morri, eu sentia a dor e o medo de cada uma delas enquanto me lembrava dos
detalhes de cada uma das minhas vidas passadas.
Os mais variados
tipos de assassinatos, em infinitos lugares, pela mão de diferentes pessoas.
- Atropelado por
um trem, esfaqueado, pauladas, queimado vivo, afogado... Só há uma constante
nisso tudo. – Ela disse, enquanto eu sentia duas mãos em volta do meu pescoço.
Como se eu me importasse... – Talvez devesse se importar. Pelo menos na sua
próxima vida.
- Como eu faço
para parar?
- Não dá.
Nesse momento o
mundo inteiro se apagou e eu me vi deitado, ainda sem enxergar nada. Quando me
dei conta do que estava acontecendo, comecei a esmurrar a tampa do caixão, mas
não foi o suficiente.
- Por que não?
Era como se minha
cabeça fosse afundada num balde de água e retirada repetidamente. Tudo o que eu
tinha eram flashes de todos os modos que eu morri.
- Você precisa
revivê-las, cada uma delas.
Quando eu pensei
que não tinha como piorar, senti infinitas fisgadas arrancando pedaços da minha
pele. Se não fosse tão doloroso, eu poderia pensar que um ataque de piranhas
era uma morte bem criativa.
E assim se
passaram horas, que eu tive a impressão de serem séculos. A dor em meu corpo
evoluiu, atingiu seu ápice e ficou lá por um longo tempo. Longo o suficiente
para me anestesiar. Eu não senti mais as lágrimas rolando pelo meu rosto, mas o
gosto salgado delas ainda estava na minha língua.
O ser que jogava
na minha cara todas as minhas burrices ria, gargalhava, parecia que o próprio
diabo zombava de mim enquanto eu caía até chegar ao inferno.
- Agora você vai
voltar.
- Para onde?
- Para a terra.
- Como assim? Eu
não morri? – Por que diabos eu estava naquele lugar, então? Será que era um
sonho?
- Morreu. Mas não
o suficiente.
Só pode ser
brincadeira! Depois de mais de não sei quantas vidas, depois de sentir todos os
tipos de dores possíveis durante um tempo que pareceu infinito, aquela desgraça
estava me dizendo que eu não tinha morrido vezes o suficiente?!
- É isso mesmo.
Você não aprendeu a lição em nenhuma das suas vidas passadas.
- Que lição?
- Não sou eu quem
vai te contar...
E então eu morri.
E depois nasci de novo. De outra mãe, em outro tempo, outro país. O futuro não
é tão bom quanto diziam ser, mas isso não importa agora. Porque alguma coisa
deu errada durante a logística da coisa de nascer-morrer-nascer de novo. Agora
eu me lembro de tudo.
E penso sobre tudo
enquanto a minha namorada respira o pó branco e limpa os resíduos que ficaram
em seu rosto. Atrás dela, a moça de cabelos loiros parecia vagamente familiar.
A partir daí todos
os acontecimentos se sucederam como quando avançamos um filme para chegar na
nossa parte favorita. Mas não era eu quem segurava o controle remoto.
A dor, o vômito,
alguém me virando de lado enquanto a moça loira olhava, seus olhos atentos, as
luzes piscando, a sirene alta demais em meu ouvido, os cabelos loiros perto
demais de mim, a luz branca, o escuro, o bipe contínuo...
- Ele se foi...
E a moça do cabelo
loiro, gargalhando, zombando de mim.
- Você morreu.
De novo.