Um vagabundo como eu
Alguns
já nasceram em casinhas de ouro. Passam os dias deitados em pufes feitos
especialmente para aconchegar seus traseiros, peludos ou não. Outros, ficam
expostos em eventos e feiras onde o mais elegante, bonito, com o pedigree mais
apurado ganha um prêmio que vai ser desfrutado apenas pelo seu dono. E existem
alguns sortudos, ao contrário de mim, que conquistam um humano que os leva para
longe das ruas, para um lugar melhor.
Eu?
Bom... Eu sou um dos integrantes da chamada “escória canina”. Sou um dos que
passa os dias sem ser percebido e as noites procurando o que comer no lixo. Sou
um daqueles cães magrelos e sarnentos, velhos e feios que ninguém nunca quis
adotar. Tive que aprender a me virar desse jeito, aceitando quem eu sou e
dormindo em cima de papelões rasgados que consegui juntar pelas ruas.
Eu
estava deitado numa dessas casinhas improvisadas quando uma delas apareceu.
Branca como a neve, focinho preto como carvão e flores cor de rosa presas nas
orelhas, a verdadeira princesa em terreno plebeu. No seu pescoço aparecia uma
coleira rosa que era segurada por uma mulher com ar de quem havia acabado de
sair do pet shop.
Não
me aproximei. Depois de tantas vezes ter sido chutado por madames metidas,
aprendi a não me aproximar. Mas isso não quer dizer que eu não tenha rolado no
chão, fuçado os papelões e nem que eu não tenha batizado todas as árvores e
postes que ficavam do meu lado da rua.
Quando
ela parou de andar de repente e ergueu o focinho um pouco mais, pensei que,
finalmente, eu tinha conseguido chamar sua atenção. A dona parou junto e ficou
olhando-a se virar para o meu lado da rua e farejar mais um pouco.
Acho
que foi aí que meu coração parou, minha língua secou e eu me sentei, arfante,
aguardando o que iria acontecer a seguir pela terceira vez só nesse dia. Seus
olhos, tão pretos como a noite, passearam pela rua, interessados. Não resisti e
deixei minha língua pender para fora da boca. Me levantei e esperei, impaciente
e com meu traseiro balançando de tanta ansiedade. Será que dessa vez ela me
viu? Será que sentiu meu cheiro? Será que ela seria a primeira das cadelas a
corresponder aos meus avanços? Eu trocaria qualquer lata de lixo por isso.
Mas
alegria de pobre dura pouco e não poderia ser diferente com esse ancião que
vive nas ruas há mais tempo do que é capaz de se lembrar. Um vagabundo como eu
nunca poderia ser alvo dos olhares de uma cadela rica e mimada. Nunca poderia
adentrar os confins de mansões e coberturas limpas e bem decoradas. Um
vagabundo como eu deve apenas se contentar em amar de longe, comer com o olho e
lamber com a testa. E procurar mais comida nas sacolas de lixo que espalham
pelas ruas.
Sejamos
realistas: eu nunca poderia cheirá-las de perto. Primeiro porque os donos me
espantam sempre. Segundo porque ela não iria querer cheirar o traseiro de um
cachorro que fede a lixo. Terceiro porque... Bem... É assim que a vida é. Meros
servos não se relacionam com a nobreza desde sempre. Não é diferente comigo.
Meu
mais novo amor, como se nunca tivesse parado para sentir os cheiros do lugar
por onde passava, continuou seu caminho sem olhar para trás. Como todas as
outras antes dela fizeram e como, provavelmente, todas as seguintes vão fazer.
Eu? Como um férreo integrante da chamada “escória canina”, todos os dias me
apaixono só para ver os amores da minha vida irem embora sem nem ao menos me
conhecer.
0 comentários :
Postar um comentário