Um vagabundo como eu

sábado, 15 de abril de 2017

Um vagabundo como eu


 
Alguns já nasceram em casinhas de ouro. Passam os dias deitados em pufes feitos especialmente para aconchegar seus traseiros, peludos ou não. Outros, ficam expostos em eventos e feiras onde o mais elegante, bonito, com o pedigree mais apurado ganha um prêmio que vai ser desfrutado apenas pelo seu dono. E existem alguns sortudos, ao contrário de mim, que conquistam um humano que os leva para longe das ruas, para um lugar melhor.

Eu? Bom... Eu sou um dos integrantes da chamada “escória canina”. Sou um dos que passa os dias sem ser percebido e as noites procurando o que comer no lixo. Sou um daqueles cães magrelos e sarnentos, velhos e feios que ninguém nunca quis adotar. Tive que aprender a me virar desse jeito, aceitando quem eu sou e dormindo em cima de papelões rasgados que consegui juntar pelas ruas.

Eu estava deitado numa dessas casinhas improvisadas quando uma delas apareceu. Branca como a neve, focinho preto como carvão e flores cor de rosa presas nas orelhas, a verdadeira princesa em terreno plebeu. No seu pescoço aparecia uma coleira rosa que era segurada por uma mulher com ar de quem havia acabado de sair do pet shop.

Não me aproximei. Depois de tantas vezes ter sido chutado por madames metidas, aprendi a não me aproximar. Mas isso não quer dizer que eu não tenha rolado no chão, fuçado os papelões e nem que eu não tenha batizado todas as árvores e postes que ficavam do meu lado da rua.

Quando ela parou de andar de repente e ergueu o focinho um pouco mais, pensei que, finalmente, eu tinha conseguido chamar sua atenção. A dona parou junto e ficou olhando-a se virar para o meu lado da rua e farejar mais um pouco.

Acho que foi aí que meu coração parou, minha língua secou e eu me sentei, arfante, aguardando o que iria acontecer a seguir pela terceira vez só nesse dia. Seus olhos, tão pretos como a noite, passearam pela rua, interessados. Não resisti e deixei minha língua pender para fora da boca. Me levantei e esperei, impaciente e com meu traseiro balançando de tanta ansiedade. Será que dessa vez ela me viu? Será que sentiu meu cheiro? Será que ela seria a primeira das cadelas a corresponder aos meus avanços? Eu trocaria qualquer lata de lixo por isso.

Mas alegria de pobre dura pouco e não poderia ser diferente com esse ancião que vive nas ruas há mais tempo do que é capaz de se lembrar. Um vagabundo como eu nunca poderia ser alvo dos olhares de uma cadela rica e mimada. Nunca poderia adentrar os confins de mansões e coberturas limpas e bem decoradas. Um vagabundo como eu deve apenas se contentar em amar de longe, comer com o olho e lamber com a testa. E procurar mais comida nas sacolas de lixo que espalham pelas ruas.

Sejamos realistas: eu nunca poderia cheirá-las de perto. Primeiro porque os donos me espantam sempre. Segundo porque ela não iria querer cheirar o traseiro de um cachorro que fede a lixo. Terceiro porque... Bem... É assim que a vida é. Meros servos não se relacionam com a nobreza desde sempre. Não é diferente comigo.

Meu mais novo amor, como se nunca tivesse parado para sentir os cheiros do lugar por onde passava, continuou seu caminho sem olhar para trás. Como todas as outras antes dela fizeram e como, provavelmente, todas as seguintes vão fazer. Eu? Como um férreo integrante da chamada “escória canina”, todos os dias me apaixono só para ver os amores da minha vida irem embora sem nem ao menos me conhecer.

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