Contos - O amigo
Ela tinha seis anos, dez meses, três dias e havia acabado de se
mudar para a rua onde eu morava. Seus olhos azuis brilhavam mais que o sol e
seus cabelos loiros dançavam com o vento morno do meio da primavera. E que azul
era aquele? Talvez fosse a blusa da mesma cor dos olhos que realçava as íris
mais lindas que eu já havia visto em toda a minha vida. Só mais tarde percebi
que reparar na roupa de uma mulher, mesmo que ela fosse só uma criança, era
sinal de um problema muito sério.
Annie... A voz doce e infantil me disse seu nome e eu quase babei
ali mesmo. No auge dos dez anos de idade, era meio estranho e nojento babar por
uma menina mais nova, mas eu já não me importava em ser motivo de chacota para
os meus amigos pelo resto do ano e mais um pouco da eternidade. A única coisa
do mundo com a qual eu me preocupava havia acabado de perguntar como eu me
chamava. Pisquei confuso e ela riu. Caramba... Tinha como aquilo piorar?
Filha única, princesinha do papai... Um diamante raro e intocável
protegido por todos os lados. O sonho de qualquer pivete mal criado imundo. O
meu sonho. Ver toda aquela atmosfera de beleza, limpeza e inocência fez com que
eu, o mais novo de cinco filhos, mudasse radicalmente. Tomar banho virou parte
da rotina e não só mais uma ordem burlada, os palavrões foram extintos do meu
vocabulário quando Annie disse que os pais não gostavam de palavras feias. Eu
queria conquistar a patricinha do final da rua antes mesmo de saber o que
significava a palavra “amor”.
E, de certo modo, deu certo. A garotinha do sorriso encantador se
tornou minha melhor amiga do mundo inteiro. E eu era seu protetor. Não me
importava com o que as pessoas diriam ou se os meus irmãos iriam rir da minha
cara, eu só estava ali para quando ela precisasse. O perfeito irmão mais velho
sem perceber que eu queria ser mais.
O tempo foi passando e a nossa amizade se tornou ainda mais
intensa e verdadeira. Se fôssemos irmãos, não seríamos tão unidos.
Famílias completamente diferentes e, mesmo assim, nos dávamos tão bem...
Ela esteve do meu lado quando meu pai morreu e eu enxuguei suas lágrimas quando
o primeiro namorado a deixou, mesmo desejando ir até o sujeito e
quebrar-lhe a cara. Acho que foi naquele dia que eu descobri o que era depender
de outra pessoa para ser feliz.
Aquele foi o primeiro de muitos outros. Annie tinha a mania chata
de se apaixonar pelo cara errado. O mais revoltante era ela não perceber que
eu, o cara certo, estava mais perto do que ela era capaz de perceber. Passei
minha adolescência vendo-a pular de amor em amor, trocando suas paixões e
despedaçando seu coração. Cheguei a acreditar que a minha loirinha de sorriso
encantador não fosse uma garota de um parceiro só para o resto da vida e
isso me desolava.
Ser seu amigo era um bônus. Olhando pelo lado masoquista da coisa,
se todos os amores iam embora depois de um tempo, o que eu tinha com Annie era
mais duradouro que um simples romance. Eu não era o namorado, mas também não
era só seu amigo. Eu era O amigo. O cara que enxugava suas lágrimas e ouvia
todas as histórias por ela vivenciadas. Loucura? Acredito sinceramente que sim.
Mas meu mundo realmente ruiu quando veio a notícia de que ela se
casaria com um Mauricinho engomado por quem se apaixonou. Depois de tantos
erros, tantas lágrimas, tantos amores errados, eis que um deles é o motivo do
sorriso mais lindo do mundo. Finalmente chegou o cara certo e não era eu. Algum
dia, por acaso, fui? O menino sujo e despenteado, o playboy de sorriso
arrogante e atitude presunçosa, o vagabundo que toda patricinha quer. Por que, eu
me pergunto, Annie não me quis? Transformei-me em cada um dos homens que ela
admirava, segui seus passos, comprei as mesmas roupas e adotei as mesmas
atitudes... E eis que o cara certo era um sujeito completamente diferente dos
outros. Diferente de mim e de tudo o que eu quis ser.
Ah! Como eu queria ser a razão daquele brilho intenso em seu
olhar! Como eu queria ser o alvo de seu sorriso e o homem a quem ela entregou
seu coração! Por mais afundado em minha própria dor que eu estivesse,
nunca poderia dizer que aquele ser angelical vestido de branco entrando na
igreja não estava feliz. Mais do que feliz, Annie estava realizada.
Não. Não gosto do cara ou apoio esse disparate. Eu a amo! Como
poderia sorrir quando a mulher que eu amo se casa com outro? Simples. Eu sorri
por ela, por que é impossível para mim não fazer o que ela quer. Não sei se a
convenci, mas foi o que eu tentei fazer. Por um instante. Sorri quando vi a
felicidade em seus olhos. Mas Annie é assim... Todo mundo sorri só de vê-la
fazendo o mesmo.
- Cuide bem dela. – “Cuide
bem da minha vida” eu queria dizer.
É bem verdade que eu tinha meu lugar de honra como padrinho, mas
eu não queria ficar ali, plantado, como um mero coadjuvante que é obrigado a
fingir que está tudo bem em não ser o mocinho. Minha vontade era ser o
principal, o protagonista e não só o secundário que torce pela morte do
mocinho, mas não faz nada por isso. Mais para público que para ator. Patético.
O problema é que eu sou um vagabundo qualquer e não tomo vergonha
na cara. Sempre fui assim e não será agora que mudarei. Continuarei assistindo
meu filme preferido e até participarei quando necessário. Enxugarei suas
lágrimas e escutarei o que tiver a dizer. Eu estarei aqui por Annie mais do que
por mim. Na patética esperança de, algum dia, ser o cara certo e não só O
amigo.
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