Prosas Mudas
Antes, era só pegar a viola
e começar a criar um mundo só seu. Zé Catito roçava os dedos nas cordas e fazia
magia soar pelos ouvidos desse mundão inteiro. Cantava as doenças do gado, as
secas do sertão, cantava o cavalgar dos cavalos e a desgraceira do ladrão.
Cantava a vida que levava,
mas, acima de tudo, cantava Dora, sua eterna namorada.
Ele via aqueles olhos míopes
rodeados por pés de galinha, contemplava os lábios murchos e rosados, admirava
as mãos enrugadas e sorria para a boca sem dentes como se ambos ainda fossem
ainda os dois jovenzinhos de antigamente.
Os traços do semblante judiado
pelo sol de rachar lhe dava uma intensa alegria, uma calma ímpar e uma paz tão
tranquila que lágrimas lhe escorriam pelos olhos enquanto cantava, tocava e
venerava Dora, sua doce amada.
Zé Catito costumava se
sentar, toda tarde, na varanda do casebre que dividia com sua velha enquanto
ela passava o café moído. O cheiro invadia suas narinas sempre que a porta se
abria e Dora aparecia segurando a bandeja, com a garrafa, os copos e o queijo
minas branquinho, que ela mesma fazia. Era o melhor queijo minas desse mundão
inteiro.
E Dora, que já havia ouvido
a barriga do marido roncar, lhe colocava café no copo e cortava um pedaço de
queijo antes de se sentar na cadeira de balanço ao lado da dele. Passavam horas
apenas proseando e desfrutando das simplicidades perfeitas que a vida tem. Ele,
com sua viola, seu café e sua velha, era o homem mais feliz do mundo inteiro.
Certo dia, Dora se esqueceu
do café. Na verdade, nem de fazer o queijo ela se lembrou e Zé teve que
lembrá-la. Na verdade verdadeira, ele mesmo fez o café e serviu o queijo por
achar que sua esposa estava adoentada. Parecia não conhecer o mundo à sua volta
e se esqueceu até mesmo de onde ficava o banheiro.
Daí pra frente, as coisas só
pioraram. Dora se esquecia das coisas cada vez com mais frequência enquanto
que, por conta disso, Zé Catito teve que ajudá-la a se lembrar cada vez com
mais afinco. Renunciou aos tempos com a viola para ensiná-la quem era ele e
quais eram os seus filhos nos porta-retratos da sala. Ele passava horas lhe
contando velhas histórias, tentando trazer de volta o brilho de reconhecimento
no olhar da velha. Deu-lhe inúmeros chás, comprou ervas de todos os jeitos e
mediu-lhe a febre várias vezes ao dia.
E assim passaram-se os dias,
semanas, lágrimas e agonias. Quando Zé estava quase enlouquecendo de tanta
aflição, Dora acordou mais feliz do que nunca. Os olhos míopes brilhavam, o
sorriso sem dentes resplandecia e ela até assou pão de queijo logo de
manhãzinha. Zé Catito deu-lhe um beijo na testa enrugada e seu próprio sorriso
sem dentes era o maior do mundo inteiro. Sua velha Dora, sua amada, estava
novamente saudável.
Hoje, Zé Catito apenas se
senta na varanda do velho casebre e toca sobre as dores de um coração
incompleto. Na verdade verdadeira, ele não mais consegue cantar. O que sai de
seus lábios são apenas murmúrios lamuriosos e chorosos repletos da amarga
saudade que lhe tomou conta do coração.
Isso porque Dora, no dia em
que acordou melhor, animada, com os olhos míopes brilhando tanto que até pão de
queijo assou, se foi. No dia em que Zé Catito viu que todo o seu árduo trabalho
valera à pena, Dora, de vestido florido e chapéu de palha, havia saído para ir
ao centro da cidadezinha mais próxima, e nunca mais voltara.
Zé não entende o motivo do
abandono logo depois de ter sido cuidada e curada por ele. Não entende como
aquela velha de lábios murchos que tanto o amava o deixou. Na verdade, Zé
Catito também não sabe mais se ela o amou de verdade ou se foi uma das muitas
faces de mulher que os filhos tanto falavam.
E, sussurrando ao vento,
proseando em silêncio, Zé permanece com sua viola no colo, sentado na cadeira
de balanço que ocupa a pequena varandinha do velho casebre, enxergando
fantasmas escondidos no vento. Seus olhos não ficaram livres da catarata, mas
ficaram vazios do brilho que sempre haviam tido desde que conhecera sua eterna
namorada. Fica ali, sentado, esperando que a polícia avise se encontrar Dora ou
que - e de preferência - a própria Dora volte e lhe diga o que de fato
aconteceu.
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