Prosas Mudas

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Prosas Mudas


Antes, era só pegar a viola e começar a criar um mundo só seu. Zé Catito roçava os dedos nas cordas e fazia magia soar pelos ouvidos desse mundão inteiro. Cantava as doenças do gado, as secas do sertão, cantava o cavalgar dos cavalos e a desgraceira do ladrão.

Cantava a vida que levava, mas, acima de tudo, cantava Dora, sua eterna namorada.

Ele via aqueles olhos míopes rodeados por pés de galinha, contemplava os lábios murchos e rosados, admirava as mãos enrugadas e sorria para a boca sem dentes como se ambos ainda fossem ainda os dois jovenzinhos de antigamente.

Os traços do semblante judiado pelo sol de rachar lhe dava uma intensa alegria, uma calma ímpar e uma paz tão tranquila que lágrimas lhe escorriam pelos olhos enquanto cantava, tocava e venerava Dora, sua doce amada.

Zé Catito costumava se sentar, toda tarde, na varanda do casebre que dividia com sua velha enquanto ela passava o café moído. O cheiro invadia suas narinas sempre que a porta se abria e Dora aparecia segurando a bandeja, com a garrafa, os copos e o queijo minas branquinho, que ela mesma fazia. Era o melhor queijo minas desse mundão inteiro.

E Dora, que já havia ouvido a barriga do marido roncar, lhe colocava café no copo e cortava um pedaço de queijo antes de se sentar na cadeira de balanço ao lado da dele. Passavam horas apenas proseando e desfrutando das simplicidades perfeitas que a vida tem. Ele, com sua viola, seu café e sua velha, era o homem mais feliz do mundo inteiro.

Certo dia, Dora se esqueceu do café. Na verdade, nem de fazer o queijo ela se lembrou e Zé teve que lembrá-la. Na verdade verdadeira, ele mesmo fez o café e serviu o queijo por achar que sua esposa estava adoentada. Parecia não conhecer o mundo à sua volta e se esqueceu até mesmo de onde ficava o banheiro.

Daí pra frente, as coisas só pioraram. Dora se esquecia das coisas cada vez com mais frequência enquanto que, por conta disso, Zé Catito teve que ajudá-la a se lembrar cada vez com mais afinco. Renunciou aos tempos com a viola para ensiná-la quem era ele e quais eram os seus filhos nos porta-retratos da sala. Ele passava horas lhe contando velhas histórias, tentando trazer de volta o brilho de reconhecimento no olhar da velha. Deu-lhe inúmeros chás, comprou ervas de todos os jeitos e mediu-lhe a febre várias vezes ao dia.

E assim passaram-se os dias, semanas, lágrimas e agonias. Quando Zé estava quase enlouquecendo de tanta aflição, Dora acordou mais feliz do que nunca. Os olhos míopes brilhavam, o sorriso sem dentes resplandecia e ela até assou pão de queijo logo de manhãzinha. Zé Catito deu-lhe um beijo na testa enrugada e seu próprio sorriso sem dentes era o maior do mundo inteiro. Sua velha Dora, sua amada, estava novamente saudável.


Hoje, Zé Catito apenas se senta na varanda do velho casebre e toca sobre as dores de um coração incompleto. Na verdade verdadeira, ele não mais consegue cantar. O que sai de seus lábios são apenas murmúrios lamuriosos e chorosos repletos da amarga saudade que lhe tomou conta do coração.

Isso porque Dora, no dia em que acordou melhor, animada, com os olhos míopes brilhando tanto que até pão de queijo assou, se foi. No dia em que Zé Catito viu que todo o seu árduo trabalho valera à pena, Dora, de vestido florido e chapéu de palha, havia saído para ir ao centro da cidadezinha mais próxima, e nunca mais voltara.

Zé não entende o motivo do abandono logo depois de ter sido cuidada e curada por ele. Não entende como aquela velha de lábios murchos que tanto o amava o deixou. Na verdade, Zé Catito também não sabe mais se ela o amou de verdade ou se foi uma das muitas faces de mulher que os filhos tanto falavam.


E, sussurrando ao vento, proseando em silêncio, Zé permanece com sua viola no colo, sentado na cadeira de balanço que ocupa a pequena varandinha do velho casebre, enxergando fantasmas escondidos no vento. Seus olhos não ficaram livres da catarata, mas ficaram vazios do brilho que sempre haviam tido desde que conhecera sua eterna namorada. Fica ali, sentado, esperando que a polícia avise se encontrar Dora ou que - e de preferência - a própria Dora volte e lhe diga o que de fato aconteceu.

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