Anastasia
Ela
segurou um lado do torniquete com os dentes e puxou o outro com uma mão.
Não foi preciso mais nada para que o vaso sanguíneo ficasse aparente. Como se
aquilo fosse um convite, uma confirmação de que era mesmo o alívio que estava à
caminho.
--
- Seria mais fácil se eu
soubesse o que acontecerá depois, Doutora Anastasia.
Apertei o êmbolo da seringa
para retirar o ar – por que eu fazia isso? - e olhei o homem deitado na maca.
Eu não sabia o que dizer – eu nunca soube o que dizer -, mas a frase dele até
que foi interessante. Nenhuma prece, nenhuma imprecação. Apenas um desejo que,
todos sabíamos, não poderia ser saciado. Algo mais absurdo até do que pedir
perdão.
Talvez a palavra
"justiça" soasse de forma diversa se nós pudéssemos saber o que nos
espera além do momento em que assistimos nossas vidas inteiras em poucos
segundos. Mas a vida não é justa. A morte, muito menos.
- Bem... Você logo descobrirá.
– Eu disse. E poderia acrescentar alguma piada do tipo “só não volte para me
contar”, mas seria exagerado demais para as circunstâncias. Deixaria para
discuti-la com meus colegas de profissão, na hora do café.
Eu sei que não é algo que se
deva falar a alguém que está prestes a ser executado, mas...
Não, não existe nenhum “mas”.
Essa resposta foi infeliz e nós dois sabíamos disso. Mas é como dizem meus
companheiros de trabalho: é preciso fazer piada e se distanciar para não
enlouquecer e começar a enxergar seus rostos enquanto dorme.
É que eu tenho o tipo de
emprego que, na idade média, colocariam um capuz preto em cima da minha cabeça.
Eu sou quem faz o trabalho sujo de colocar o laço no pescoço do criminoso.
Todos os dias eu vejo seus rostos e enxergo uma alma em seus olhos. Dizem
que é melhor eu não olhar, mas o que eu posso fazer quando eles clamam apenas
por um pouco de humanidade?
Depois do breve instante de
conexão de olhares, meu cérebro se desliga e eu faço o que tem quer ser feito.
E é o fim.
Em algumas situações, é melhor
não pensar.
Mas o pensamento do
prisioneiro fazia sentido. Seria mais fácil se eu soubesse para onde eles vão.
--
Quer uma pequena amostra da
tortura? Não posso oferecer, e nem teria coragem. Mas posso fazer uma pergunta:
Quantas pessoas você já matou
em toda a sua vida?
Só hoje, eu já matei quinze.
Dez homens e cinco mulheres. Catorze deles tinham filhos. Nove receberam a
visita da mãe antes de morrer. A maior parte rezou, alguns se revoltaram e
começaram a se debater. Uma mulher desmaiou em seu desespero e muitos me
olharam com pavor, como se eu fosse a própria morte.
O que, de certo modo, eu sou.
Ao longo da minha carreira
como assassina legalizada (eles não gostam que eu diga isso, mas é exatamente o
que eu sou.), aprendi algumas coisas sobre a natureza humana.
Primeiro:
as pessoas são mais propensas a acreditar em Deus quando percebem que chegou a
hora de morrer.
Segundo: o desespero pode ter
diferentes maneiras de se manifestar. Gritos, preces, lágrimas, um sufocante
silêncio sepulcral... Acredito que eu poderia saber como seria a reação de cada
um deles se eu conhecesse um pouco mais sobre suas personalidades, o que
eu não quero.
Terceiro: a minha
estratégia de não conhecê-los nunca funcionou. No milésimo de segundo em que
nossos olhos se encontram, sei exatamente como vão reagir.
Quarto: nem todos se
arrependem.
Quinto: nós não evoluímos
muito desde a guilhotina.
E sexto: os que falam são os
piores.
Uma das minhas pacientes,
Margareth, começou a falar sobre os seus filhos. Me deu uma descrição precisa
sobre como era cada um deles, desde o nascimento. Falou sobre o som do choro e
sobre o cordão umbilical. E, com lágrimas nos olhos, disse que não se
arrependia de tê-los abandonado por não ter o que comer. “Coloquei na porta de
casa de gente rica. Não vão ficar com a barriga roncando de fome quando
crescerem.” E morreu por eles.
Outro deles, Brandon, matou
seis pessoas. Pelo menos, foi o que disseram, já que ele não se lembra de
nenhum dos rostos que lhe foram apresentados por fotos tiradas no
necrotério. De tanto repetirem, ele concordou. Suas digitais estavam na cena do
crime, suas roupas ficaram sujas de sangue. Como ele poderia negar? No
laudo médico que me deram, o psiquiatra diagnosticou transtorno de
personalidade múltipla e indicou uma clínica de tratamento. Com o tempo, ele
ficaria são. Quando ele fechou os olhos, uma lágrima escorreu e eu mordi meus
lábios ao ponto de sangrarem. A dor não diminuiu. Talvez eu devesse procurar um
psiquiatra.
Clinton sorriu quando eu
entrei. Disse que era bom ver pelo menos um rosto bonito antes de partir. Sua
voz rouca pelo cigarro recitou nomes e mais nomes das pessoas que tentaram
apedrejá-lo quando souberam que ele havia arrancado o pênis de um outro homem e
colocado dentro da própria boca do defunto. Disseram que sua atitude era a de
um psicopata. A pena para os psicopatas? Bom... Clinton veio me visitar,
não? E me deu o local exato do túmulo da sua filha, que foi vingada. Pediu para
que eu colocasse uma única tulipa vermelha em sua lápide. Amor eterno.
Edgard, aos 64 anos, ficou
mofando na prisão por quarenta e dois anos. Disse, em seus últimos momentos,
que nenhum inquérito policial com seu nome existia. Só disseram que ele cometeu
um crime e jogaram-no numa cela com mais trinta presos. A maior parte,
traficantes. Todos homossexuais que fizeram o possível para esconder as
próprias necessidades. Mas, com o tempo, não conseguiram e deram o seu jeito
para aliviar o desejo. Agora, trouxeram ele para a minha “sala” porque
alguém que havia ficado cego ocupava espaço demais na cadeia. Não vai ocupar
mais.
Uma outra paciente disse que
chegou a matar quinze pessoas por dia. Eles entravam no seu consultório andando
e saiam cobertos por um lençol branco. Seus lábios recitaram histórias e mais
histórias sobre pessoas que diziam sofrer. Nesse momento, ela sorriu e disse
que acreditava que eles haviam parado de chorar e que, com ela, seria a mesma
coisa. Ela disse também que um de seus pacientes queria saber o que havia do
outro lado, disse que seria mais justo. E isso a fez pensar. Seu nome era
Anastasia.
0 comentários :
Postar um comentário