Abrigo

terça-feira, 22 de março de 2016

Abrigo




Inspirado no livro "O refúgio secreto" escrito por Corrie Ten Boom

Os passos ecoam, apressados. Algumas das vozes são rudes, ásperas, cheias de rancor e raiva. Outras são chorosas, quase mudas. Aquela velha disciplina diabólica nos impede de mexer um músculo sequer. Quantos somos nós? Seis, sete pessoas num cômodo secreto feito para trazer um pouco de luz em tempos tão sombrios quanto a morte? Entretanto, não enxergo nada. Apenas escuto as vozes abafadas gritando ordens e as respirações que se confundem numa área de menos de dois metros quadrados. Não podemos nos mexer, não podemos falar ou sentir. Fomos privados de viver.

Quantos somos nós? Sete, oito pessoas escondidas num quarto escuro? Mas também somos milhares de fugitivos presos num esconderijo procurando a liberdade; ou, no mínimo, um pouco de respeito. Não consigo ver quem se salvou ou quem foi preso. Não consigo ouvir mais nada. Apenas sinto o medo de todos nós juntos, o peso dos meus noventa e três anos, o cheiro de quarto fechado e a dor incessante da asma no peito.

Quanto tempo se passou? Dois, três dias? Não temos mais água, não temos mais coragem de sair, não tenho mais ar. Mesmo juntos, o frio do inverno de 1944 entra por não sei onde e me faz tremer. Ou será 1945? O natal já passou enquanto estamos escondidos? Alguém tem que sair. Não é uma opção. Continuar aqui dentro sem água e sem comida não será muito diferente de ser presa pelos nazistas e enviada a algum campo de extermínio. E sair significa exatamente isso: ser levada a algum campo de extermínio nazista.

Um lamento vem de algum lado do pequeno quarto. Ou será de todos os lados? Seguido de um choramingo e um gemido. Enquanto os outros pensam se deveriam ou não falar, eu me lembro do bebê prematuro e da sua mãe judia, rejeitados pelo hospital público. Ele precisa de alimento e ela está fraca demais por conta do parto difícil. Que deus salve essas pobres almas. Que a salvação seja a morte, se assim for melhor.

Temos que sair. E não nos foi dada nenhuma opção. Em menos de dois minutos, juntamos todos os vestígios da nossa presença e os enfiamos pela pequena porta do menor aposento da casa, o quarto secreto. Hoje em dia, raras são as residências que não têm um quarto desses. Por mais desesperador que pareça ser essa correria toda, o medo de ser preso é um potente combustível.

Vejo os rostos tensos em prece, o cheiro do medo se transformou no único cheiro que sentimos. Uma sinfonia de imagens disformes aparece na minha frente e meus olhos doem com a claridade. O som da porta se abrindo me tira do torpor quase insano enquanto eles entram, um atrás do outro, no minúsculo quarto. Será que terá espaço o suficiente?

Primeiro os amigos que conheci no abrigo secreto. Não tenho certeza sobre os seus nomes, mas não tenho tido muita certeza de nada ultimamente. Todos eles  têm o rosto machucado e o corpo lesionado. Sem falar em sua desnutrição. A mulher do dono da loja de panos, o funcionário da padaria, o filho do dono da mesma loja, o carteiro, a gentil moça da loja de flores... Todos da mesma vizinhança, todas são pessoas com as quais eu me encontrava diariamente.

Por que estariam aqui? Será que também vieram procurando abrigo? Provavelmente.

Consigo abrir um sorriso frouxo quando vejo meu marido, meus quatro filhos e então meus netos entrarem. Ah... Como eu senti a falta deles! O neném começa a chorar e alguém tosse. Não sei quem me puxa pelo braço e me põe de pé bruscamente. Escuto um grito e consigo enxergar a suástica no uniforme do homem que me mantém de pé. Por que não sinto medo?


Num segundo, tudo se mistura e eu consigo ter uma única certeza: todas aquelas pessoas que entraram no quarto secreto, a mulher do dono da loja de pano, o funcionário e o filho do dono da padaria, a moça da floricultura... Meu marido, meus quatro filhos, nove netos... Todas elas estão mortas.

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