Abrigo
Os passos ecoam, apressados.
Algumas das vozes são rudes, ásperas, cheias de rancor e raiva. Outras são chorosas,
quase mudas. Aquela velha disciplina diabólica nos impede de mexer um músculo
sequer. Quantos somos nós? Seis, sete pessoas num cômodo secreto feito para
trazer um pouco de luz em tempos tão sombrios quanto a morte? Entretanto, não
enxergo nada. Apenas escuto as vozes abafadas gritando ordens e as respirações
que se confundem numa área de menos de dois metros quadrados. Não podemos nos mexer,
não podemos falar ou sentir. Fomos privados de viver.
Quantos somos nós? Sete,
oito pessoas escondidas num quarto escuro? Mas também somos milhares de
fugitivos presos num esconderijo procurando a liberdade; ou, no mínimo, um
pouco de respeito. Não consigo ver quem se salvou ou quem foi preso. Não
consigo ouvir mais nada. Apenas sinto o medo de todos nós juntos, o peso dos
meus noventa e três anos, o cheiro de quarto fechado e a dor incessante da asma
no peito.
Quanto tempo se passou?
Dois, três dias? Não temos mais água, não temos mais coragem de sair, não tenho
mais ar. Mesmo juntos, o frio do inverno de 1944 entra por não sei onde e me
faz tremer. Ou será 1945? O natal já passou enquanto estamos escondidos? Alguém
tem que sair. Não é uma opção. Continuar aqui dentro sem água e sem comida não
será muito diferente de ser presa pelos nazistas e enviada a algum campo de
extermínio. E sair significa exatamente isso: ser levada a algum campo de
extermínio nazista.
Um lamento vem de algum lado
do pequeno quarto. Ou será de todos os lados? Seguido de um choramingo e um
gemido. Enquanto os outros pensam se deveriam ou não falar, eu me lembro do
bebê prematuro e da sua mãe judia, rejeitados pelo hospital público. Ele
precisa de alimento e ela está fraca demais por conta do parto difícil. Que
deus salve essas pobres almas. Que a salvação seja a morte, se assim for
melhor.
Temos que sair. E não nos
foi dada nenhuma opção. Em menos de dois minutos, juntamos todos os vestígios
da nossa presença e os enfiamos pela pequena porta do menor aposento da casa, o
quarto secreto. Hoje em dia, raras são as residências que não têm um quarto
desses. Por mais desesperador que pareça ser essa correria toda, o medo de ser
preso é um potente combustível.
Vejo os rostos tensos em
prece, o cheiro do medo se transformou no único cheiro que sentimos. Uma
sinfonia de imagens disformes aparece na minha frente e meus olhos doem com a
claridade. O som da porta se abrindo me tira do torpor quase insano enquanto
eles entram, um atrás do outro, no minúsculo quarto. Será que terá espaço o
suficiente?
Primeiro os amigos que
conheci no abrigo secreto. Não tenho certeza sobre os seus nomes, mas não tenho
tido muita certeza de nada ultimamente. Todos eles têm o rosto machucado
e o corpo lesionado. Sem falar em sua desnutrição. A mulher do dono da loja de
panos, o funcionário da padaria, o filho do dono da mesma loja, o carteiro, a
gentil moça da loja de flores... Todos da mesma vizinhança, todas são pessoas
com as quais eu me encontrava diariamente.
Por que estariam aqui? Será
que também vieram procurando abrigo? Provavelmente.
Consigo abrir um sorriso
frouxo quando vejo meu marido, meus quatro filhos e então meus netos entrarem.
Ah... Como eu senti a falta deles! O neném começa a chorar e alguém tosse. Não
sei quem me puxa pelo braço e me põe de pé bruscamente. Escuto um grito e
consigo enxergar a suástica no uniforme do homem que me mantém de pé. Por que
não sinto medo?
Num segundo, tudo se mistura
e eu consigo ter uma única certeza: todas aquelas pessoas que entraram no
quarto secreto, a mulher do dono da loja de pano, o funcionário e o filho do
dono da padaria, a moça da floricultura... Meu marido, meus quatro filhos, nove
netos... Todas elas estão mortas.
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