Ela (não) vai voltar
Inspirado na música "Ela vai voltar" da banda Charlie Brown Jr.
Estranho como nos agarramos
a alguma música que, pelo menos por uma estrofe, descreve nossa vida. Como se
as melodias e palavras melancólicas pudessem servir de algum consolo ou força
milagrosa que nos faz abrir a porta e ir atrás da namorada que cansou das
loucuras de um cara insano. E me vem à cabeça o velho dilema humano: a vida
imita a arte ou a arte imita a vida?
Não era muita coisa. Só dez
gramas de um pó branco límpido e libertador. Mas Alice não via assim. Para
ela, era minha ruína, minha insanidade, nosso fim. E foi por isso que ela fez
as malas, bateu a porta como se pudesse ser capaz de demolir todo o prédio de
dez andares apenas com esse gesto e foi embora. Olhou para trás apenas para me
lançar um olhar de desprezo e foi embora.
Depois tudo passou muito
rápido e, ao mesmo tempo, como numa daquelas câmeras super lentas que mostram
até a língua do carrapato encostar na pele para sugar o tão precioso sangue do
cachorro. A velocidade dos acontecimentos mudando tão rapidamente que me fez
vomitar no tapete da sala.
Num instante eu espalhava
toda a cocaína pelo apartamento, tentando achar um jeito de convencê-la a
voltar sem ter que me afastar do meu vício. E, no instante seguinte, o telefone
tocava, eu atendia, a voz grave me falava sobre um acidente em algum lugar na
rodovia MG 30 e recitava os ferimentos de uma vítima fatal. Toda a conversa não
chegou a durar nem cinco minutos. Menos de cinco minutos que mais pareceram
décadas. Uma partícula de poeira dançava na frente do meu rosto, a luz do sol
de fim de tarde entrava pelas frestas das cortinas e atingia minha pele
trazendo um calor que se transformou em gelo à medida que o homem falava e a
música avançava. Rápido demais. Eu fui lento demais.
E eu entendia o que estava
acontecendo.
Como num mundo onde tudo é
mais devagar, me lembrei das últimas horas. A cocaína entrando pelas minhas
narinas e alcançando os pulmões para então afetar meu cérebro, Alice entrando
na sala vestindo só uma das minhas camisas, os gritos, as lágrimas, o cartão
quebrado, a mesa de centro tombada, tudo espalhado e a porta batendo. Chorão
caracterizando minha mulher de verdade com uma calmaria alta o suficiente para
incomodar os vizinhos, o arrependimento, a vontade insana de ir atrás dela, a
lembrança do engasgado "não me procure mais" ecoando em meus ouvidos.
Nos meus delírios
ocasionados pela droga e pela dor, a voz rouca ecoava pelo meu apartamento e se
misturava aos meus soluços, que seguiam seu ritmo como se aquilo fosse uma
prece. Eu seria capaz de me agarrar a um simples verso?
Minha mente
nem sempre tão lúcida fez ela se afastar, mas ela vai voltar...
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