Algum drama qualquer - VI
Chamava-se Walter ou Otávio?
Quantos sobrenomes ocupavam espaço na sua carteira de identidade? Passava na
frente do espelho e não reconhecia os olhos que lhe encaravam de volta. O que
será que aconteceu?
Já não sabe com o quê
trabalha e nem onde mora. Apenas encara a máquina de escrever e o papel com
diversas frases inacabadas. Ele deveria fazer algo com aquilo, não? Finalizar a
sentença, mais algumas palavras e um ponto final... Ou seria uma interrogação?
Exclamação? Melhor ler tudo de novo para só depois decidir. Ou lembrar o que
deveria fazer.
Não se encontra em nenhum
corredor, a cozinha lhe é estranha, os porta-retratos na sala lhe sussurram
lembranças desconhecidas. Suas mãos não eram raquíticas e enrugadas? Não havia
uma patrulha na garagem? O que aconteceu? Para onde foi? Onde é que deveria
estar? Lá fora, na chuva, ou num escritório fedido elaborando uma petição?
Não havia nenhum closet lotado
com ternos da alta costura. Apenas casacos de pouca qualidade e um ou dois chapéus
dentro de uma armário que fedia a mofo. O hospital não fica mais do outro lado
da cidade. Ou trabalhava na biblioteca? Por que tão indeciso? Por que tão
confuso? Para onde foi todo mundo?
Nada lhe é familiar.
Sente-se deslocado. O papel ainda repousa sobre a mesa. Tem a vaga sensação de
ter que terminar algo em certo prazo de tempo, mas o que? Quando? Para que? Não
havia colocado o ponto final no fim da frase? Já havia digitado o temido
"Fim"?
Onde enterrou os corpos? Em
que beco esqueceu a arma? Qual policial quase lhe descobriu? Ou seria ele mesmo
a vítima que jazia no beco escuro? Alguma testemunha que corria risco de vida?
Nada mais fazia sentido
algum. Estava se consumindo em dúvidas, em perguntas eternas que nunca lhe
trariam resposta ou redenção. Talvez, um dia, soubesse que fora o criador e
que todos os seus outros eus eram
personagens, mas, naquele momento, sua mente estava confusa demais para notar qualquer
coisa.
As lembranças vinham como
relâmpagos numa noite escura. Rápidas, pequenos flashes de claridade que
duravam não mais que dois segundos. Mas já era algo útil. Davam-lhe, pelo
menos, um ponto de partida para uma nova história, uma nova vida.
Se antes mergulhava num novo
personagem, num novo livro, agora passou a ser o personagem, a participar do
livro. Não era mais um escritor, era o narrador, o protagonista, antagonista e
secundários. Era todos eles juntos num só ser. Cada capítulo, todos misturados,
desordenados, confusos... Um exato reflexo da sua mente. As histórias não se
completavam, mas se uniam num ponto e caminhavam para outro completamente
diferente. Talvez uma consulta com o analista resolvesse o problema, mas... Não
seria ele o analista?
Aquele era seu modo de não
enfrentar a realidade de ser um homem abandonado pelo mundo. Mergulhava no seu
trabalho simplesmente para não encarar o vazio que lhe encarava de dentro. A
própria carcaça que abrigava sua alma era seu mausoléu, seu templo sagrado. Sua
mente apenas lhe cedia imagens enquanto ele as colocava no papel. No notebook,
na máquina de escrever, com a caneta em mãos... Qualquer coisa. Só precisava
escrever. E esquecer. Separar uma história da outra, a ficção da realidade, a
vítima do culpado. Apenas diferenciar um personagem do outro, uma história da
outra e, se tivesse alguma sorte, redescobrir-se, encontrar quem realmente era.
Para isso ele tinha que escrever.
No notebook ou mesmo à mão. Separar uma história da outra, a ficção da
realidade, a vítima do culpado...
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