Crônica - Heróis brasileiros

terça-feira, 12 de maio de 2015

Crônica - Heróis brasileiros


Eu estava me decidindo sobre qual o tamanho do pacote de açúcar comprar quando ouvi os gritos do pessoal que estava no bar. A primeira coisa que pensei foi em achar uma saída de emergência, mesmo que fosse improvisada ou algum lugar para me esconder. Meus olhos arregalados foram do balcão para o balconista quando percebi algo de diferente na sua postura e em seu rosto. Ele sorria. Como assim ele sorria? Não estávamos sendo vítimas de um ataque terrorista? Assalto? Tiroteio? Que espécie de masoquismo era aquele?
Quase tive um enfarto, pela segunda vez no dia, quando um monte de homens veio berrando e correndo na minha direção. Certo. Não era um ataque terrorista. Nenhum deles parecia ter bombas escondidas embaixo da roupa – a maior parte nem usava camisa – ou estava pedindo desesperadamente para que Alá o mandasse ao paraíso das mil virgens.
Assalto coletivo? Mas para quê tudo isso para assaltar apenas um jovem estrangeiro magricela? Podem levar o açúcar, se quiserem. Só não me matem.
Foi tarde demais que entendi o que se passava. Percebi que eu, um africano no meio da selva carinhosamente chamada de Brasil, estava no meio de um bando de machos que choravam feito crianças pequenas porque seu time de futebol havia ganhado alguma coisa. Algo grande, presumo. Eles não ficariam tão desesperados assim se fosse pouca coisa. Ou ficariam? Não sei. Mas enfim... A questão é que não entendi o motivo de tanta emoção. O que eles ganhavam com isso?
Um dos meus erros foi perguntar isso ao velho que segurava um terço passando os dedos pelas contas furiosamente. Ele me olhou como se não entendesse meu falho português. Repeti a pergunta e o velho apenas continuou a olhar para a imensa TV grudada na parede. Tentei novamente, mas, dessa vez, perguntei que título o time dele havia ganhado.
- Não ganhou. – Respondeu para meu completo espanto. – Ainda não.
- Como assim?
- Zezinho fez um gol. Agora é só manter o placar que a gente... – Foi interrompido por mais gritos. Dessa vez furiosos, os homens começaram a xingar o juiz e sua mãe. Isso tudo porque o outro time fez um gol. Ainda não entendi o que a mãe do homem de camisa amarela florescente tem a ver com isso, mas deve ser algum ritual deles.
Fiquei assistindo aquele espetáculo de mau gosto até o final, quando um moleque do cabelo estranho chutou a bola e, antes mesmo dela entrar no gol, todos estavam pulando e berrando novamente. Consegui sair do meio daquela loucura toda e fui para minha casa na esperança de dormir um pouco mais confortável que da última vez.
Depois de algumas tentativas frustradas de entrar em algo parecido com coma profundo, – sofrer de insônia é torturante – fui para a minúscula sala e liguei a TV. Enquanto preparava meu chá de raiz de alface, – meu mais novo companheiro – ouvi o comentarista dizendo algo sobre o herói brasileiro que ganhou o torneio mundial de futebol.
Herói?
Por ganhar um torneio de futebol?
Por fazer um mísero gol?
Eu acho que não.
Com o perdão previamente recebido de toda a população adoradora do futebol, onde é que foi parar o cérebro dos brasileiros? Talvez embrulhado numa bola multicolorida ou no salário de um dos seus “heróis”.
De onde eu vim é raro ter água limpa para beber. Fui um dos poucos privilegiados que conseguiu sair de lá e procurar uma vida melhor. Quando chegava um médico na cidade, havia quilômetros de filas de pessoas para serem atendidas com equipamentos mais precários que o fusca amarelado que foi abandonado na esquina daqui de casa. As pessoas se matam por comida e aqui os homens reverenciam um magricela qualquer que ganha cinco milhões de dólares só para chutar uma bola que também custa um absurdo.
Vi a tal entrevista do herói. Quando o repórter disse “Zezinho” me lembrei na hora do homem do bar. Então era aquele moleque de cabelo estranho que era chamado de herói? O que ele faz além de brincar de bola e ganhar milhões por mês? Qual a relevância para a sociedade? E ainda, cá para nós, seu português consegue ser pior que o meu.
Futebol aqui é coisa séria, eu sei. Mas colocar a paixão no lugar da necessidade é insano.
Comecei a pesquisar sobre esses heróis brasileiros. Se é que podem ser chamados de heróis essas pessoas que só ganham dinheiro e aparecem na televisão e na revista de fofoca. Quanto ganham para ficar numa ilha (ou castelo) só para tirar fotos? Qual o sentido disso? Alimentar os bolsos de outras pessoas que estão ainda menos preocupadas com o resto do mundo? Não faz sentido. Não para mim.
Outra coisa que não faz sentido é o jeito como as pessoas esquecem tudo facilmente. O político que prendeu milhares de pessoas na ditadura é o mesmo que ganha as eleições para presidente logo depois. O acusado de corrupção é eleito governador. Brasileiro tem a mania irritante de reclamar de ser feito de capacho quando praticamente implora para que isso aconteça.
Não sei não... Mas a definição de “herói” dos brasileiros está um tanto quanto exótica. Para não dizer estranha, inversa e, que me perdoem os primos dos cavalos, burra.

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