Crônica - Heróis brasileiros
Eu estava me decidindo sobre
qual o tamanho do pacote de açúcar comprar quando ouvi os gritos do pessoal que
estava no bar. A primeira coisa que pensei foi em achar uma saída de
emergência, mesmo que fosse improvisada ou algum lugar para me esconder.
Meus olhos arregalados foram do balcão para o balconista quando percebi algo de
diferente na sua postura e em seu rosto. Ele sorria. Como assim ele sorria? Não
estávamos sendo vítimas de um ataque terrorista? Assalto? Tiroteio? Que espécie
de masoquismo era aquele?
Quase tive um enfarto, pela
segunda vez no dia, quando um monte de homens veio berrando e correndo na minha
direção. Certo. Não era um ataque terrorista. Nenhum deles parecia ter bombas
escondidas embaixo da roupa – a maior parte nem usava camisa – ou estava
pedindo desesperadamente para que Alá o mandasse ao paraíso das mil virgens.
Assalto coletivo? Mas para
quê tudo isso para assaltar apenas um jovem estrangeiro magricela? Podem levar
o açúcar, se quiserem. Só não me matem.
Foi tarde demais que entendi
o que se passava. Percebi que eu, um africano no meio da selva carinhosamente
chamada de Brasil, estava no meio de um bando de machos que choravam feito
crianças pequenas porque seu time de futebol havia ganhado alguma coisa. Algo
grande, presumo. Eles não ficariam tão desesperados assim se fosse pouca coisa.
Ou ficariam? Não sei. Mas enfim... A questão é que não entendi o motivo de
tanta emoção. O que eles ganhavam com isso?
Um dos meus erros foi
perguntar isso ao velho que segurava um terço passando os dedos pelas contas
furiosamente. Ele me olhou como se não entendesse meu falho português. Repeti a
pergunta e o velho apenas continuou a olhar para a imensa TV grudada na parede.
Tentei novamente, mas, dessa vez, perguntei que título o time dele havia ganhado.
- Não ganhou. – Respondeu
para meu completo espanto. – Ainda não.
- Como assim?
- Zezinho fez um gol. Agora
é só manter o placar que a gente... – Foi interrompido por mais gritos. Dessa
vez furiosos, os homens começaram a xingar o juiz e sua mãe. Isso tudo porque o
outro time fez um gol. Ainda não entendi o que a mãe do homem de camisa amarela
florescente tem a ver com isso, mas deve ser algum ritual deles.
Fiquei assistindo aquele
espetáculo de mau gosto até o final, quando um moleque do cabelo estranho
chutou a bola e, antes mesmo dela entrar no gol, todos estavam pulando e
berrando novamente. Consegui sair do meio daquela loucura toda e fui para minha
casa na esperança de dormir um pouco mais confortável que da última vez.
Depois de algumas tentativas
frustradas de entrar em algo parecido com coma profundo, – sofrer de insônia é
torturante – fui para a minúscula sala e liguei a TV. Enquanto preparava meu
chá de raiz de alface, – meu mais novo companheiro – ouvi o comentarista
dizendo algo sobre o herói brasileiro que ganhou o torneio mundial de futebol.
Herói?
Por ganhar um torneio de
futebol?
Por fazer um mísero gol?
Eu acho que não.
Com o perdão previamente
recebido de toda a população adoradora do futebol, onde é que foi parar o
cérebro dos brasileiros? Talvez embrulhado numa bola multicolorida ou no
salário de um dos seus “heróis”.
De onde eu vim é raro
ter água limpa para beber. Fui um dos poucos privilegiados que conseguiu sair
de lá e procurar uma vida melhor. Quando chegava um médico na cidade, havia
quilômetros de filas de pessoas para serem atendidas com equipamentos mais
precários que o fusca amarelado que foi abandonado na esquina daqui de casa. As
pessoas se matam por comida e aqui os homens reverenciam um magricela qualquer
que ganha cinco milhões de dólares só para chutar uma bola que também custa um
absurdo.
Vi a tal entrevista do
herói. Quando o repórter disse “Zezinho” me lembrei na hora do homem do bar.
Então era aquele moleque de cabelo estranho que era chamado de herói? O que ele
faz além de brincar de bola e ganhar milhões por mês? Qual a relevância para a
sociedade? E ainda, cá para nós, seu português consegue ser pior que o
meu.
Futebol aqui é coisa séria,
eu sei. Mas colocar a paixão no lugar da necessidade é insano.
Comecei a pesquisar sobre
esses heróis brasileiros. Se é que podem ser chamados de heróis essas pessoas
que só ganham dinheiro e aparecem na televisão e na revista de fofoca. Quanto
ganham para ficar numa ilha (ou castelo) só para tirar fotos? Qual o sentido
disso? Alimentar os bolsos de outras pessoas que estão ainda menos preocupadas
com o resto do mundo? Não faz sentido. Não para mim.
Outra coisa que não faz
sentido é o jeito como as pessoas esquecem tudo facilmente. O político que
prendeu milhares de pessoas na ditadura é o mesmo que ganha as eleições para
presidente logo depois. O acusado de corrupção é eleito governador. Brasileiro
tem a mania irritante de reclamar de ser feito de capacho quando praticamente
implora para que isso aconteça.
Não sei não... Mas a
definição de “herói” dos brasileiros está um tanto quanto exótica. Para não
dizer estranha, inversa e, que me perdoem os primos dos cavalos, burra.
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