Forjeador
Era uma vez um homem
solitário, melancólico, que vagava pelo mundo procurando por algo que o
completasse, que trouxesse sentido à sua vida e que o fizesse se sentir humano
depois de... Quanto tempo mesmo? Não sei. Já faz tanto tempo que eu nem me
lembro mais. Mas enfim...
Era uma vez um homem sem
alma.
Seu nome se perdeu – ou se
misturou – com mais milhares de outros. Alguns parecidos, com a mesma letra
inicial. Outros eram tão opostos como água e fogo. Alguns se anulavam, outros
se completavam. Alguns eram tão marcantes que faziam com que ele se esquecesse
do último. Mas nenhum deles foi capaz de fazê-lo se lembrar do primeiro. E,
talvez, único.
Seu sobrenome nem merece
tanta atenção. Acredito – e ele também – que nunca chegou a ter algum. Ou, se
chegou, surgiu e se desintegrou tão rapidamente que até mesmo a mais remota
lembrança é inexistente.
Seu reflexo também é
desconhecido. Talvez ele nem mesmo saiba o que é um espelho. Sua própria figura
– interna e externa – é tão misteriosa como a mais misteriosa e desconhecida de
todas as coisas. Não como um vampiro – vampiros sabem o que são -, mas como...
Como algo desconhecido até pela mais sábia das criaturas. E talvez, acredito
eu, ele nem mesmo tenha uma imagem de si mesmo.
Nosso homem – ou não será
mulher? - sem nome, sobrenome ou imagem definida, está sentado numa imensa mesa
de uma gigantesca sala de jantar. Seu alimento, caçado há apenas alguns
minutos, repousa na louça antiga que ele resolveu colecionar. É um hobbie seu
que foi de um dos muitos nomes que conseguiu ao longo da sua existência. Ou
será que ele, em algum momento, existiu?
O ser desprovido também de
gênero ou sexo ainda tem as mãos sujas pelo líquido transparente que escorreu
dos olhos da garota que encontrou há pouco. Ao entrar em contato com o âmago do
ser que agora lhe serve de alimento, o homem – ou mulher – sem alma, ficou sujo
por essa substância que gosta de chamar de sangue. Não um sangue comum, é
claro, mas uma espécie rara, que só os raros conseguem arrancar. Alguns
chamariam de lágrimas, mas ele não faz as pessoas chorarem. Ele faz almas
sangrarem. Mais do que isso, nosso ser sem alma anda pelo mundo mutilando
espíritos completos, transformando-os em cascas tão vazias quanto ele mesmo.
Ele se alimenta desse
sangue, desse centro de poder que existe dentro de cada um de nós. A pequena
esfera acinzentada e brilhante é o que repousa na porcelana antiga que lhe
serve de prato. Ele acredita que, servindo-se de seres humanos, poderá se
transformar novamente em um. Talvez ele queira para si sua alma de volta,
talvez ele se contente apenas com uma substituta, mas uma das poucas certezas
que eu tenho é a de que ele deseja se encontrar. Mais do que isso, ele precisa
preencher o vazio que alguém, um dia, deixou ali, dentro de seu peito.
“Alguém”... Ironicamente,
ele se lembra dos nomes das pessoas que foram capazes de fazê-lo se esquecer de
si mesmo. Mas os nomes não são importantes para a nossa história. O que os
donos desses nomes representam é que nos interessa.
Era uma vez uma criança que,
ainda no ventre da mãe, soube o que é sofrer. Junto a sua progenitora, chorou
pelas sarjetas e becos escuros, frios, imundos. Ligados um ao outro, conheceram
o inferno da fome. Era apenas um feto que não fazia ideia de que seria um
grande erro nascer. Na sua certidão de nascimento, na área destinada ao seu
nome, constava apenas uma palavra. Palavra essa que, como eu disse antes, foi
esquecida.
Era uma vez uma criança que
não foi aceita pelo próprio pai. Ela aprendeu desde cedo a se esconder no
escuro, a se encolher embaixo de marquises, a se transformar em sombra em plena
luz do dia. Aprendeu que não se pode confiar em ninguém, nem mesmo em seu
próprio reflexo.
A criança nômade, que
buscava os lugares mais quentes e com mais alimentos, sabia quem era e conhecia
seu lugar, apesar de tudo. Tinha princípios que seguia à risca, regras próprias
que conhecia e poderia recitar na ponta da língua. Mas ainda era uma criança.
E, como tal, ainda era capaz de ter esperança e de acreditar.
Tanto que chegou a acreditar
que tinha direito à felicidade quando chegaram perto e demonstraram
solidariedade. Pela primeira vez em toda a vida, sentiu o cheiro de roupa
limpa, água quente banhando seu corpo e a maciez de dormir numa cama com
colchão macio. Na verdade, nunca havia dormido numa cama e achou que flutuava
por entre as nuvens quando soube como era a sensação de lençóis limpos roçando
em sua pele.
O casal bem vestido levara-o
para sua própria casa e chegou a chamá-lo de filho. Por algum tempo, acreditou
mesmo que tinha uma família. Mas foi só por um curto intervalo de tempo.
Intervalo esse que durou até que as pessoas, que estava se acostumando a chamar
de pai e mãe, fossem enterrados no quintal da mansão para onde fora levado.
Haviam sim formado uma
família. Mas a terceira parte dela não era importante para os outros parentes.
Talvez fosse culpa da sua cor, ou dos maus hábitos que tinha à mesa. Ou então,
quem sabe, não fosse seu cabelo que não agradava?
De sarjeta a travesseiros de
pena. De banquetes à comida de abrigos para órfãos abandonados pelo mundo.
Confuso, perdido, mais uma vez sozinho.
Era uma vez um adolescente
que se esqueceu de quem era. Desde então, nosso protagonista aprendeu a ser
vários em um só. Se transformou em diferentes pessoas para sobreviver em
diferentes lugares, convivendo com diferentes personalidades e costumes. Se
dividiu em dois, quatro, mil. Fez o trabalho de todos, roubou de muitos e se
perdeu como a grande parte do resto do mundo. Foi levado pela maré do submundo,
dormiu em areia movediça e, quando se deu conta, já estava roubando a alma de
pessoas para conseguir achar a sua própria essência corrompida e amassada.
O que nosso protagonista é
incapaz de perceber é que as pessoas que deitam em seu prato de porcelana
antiga não são mais pessoas depois que são engolidas por seres como ele. Ficam
perdidas, confusas, sozinhas. Esquecem-se de quem são e vagam pelos becos
escuros e sujos, procurando o próprio reflexo inexistente.
Muitas vezes são confundidas
com mendigos, drogados, bandidos e foragidos. São comparados a nada e viram pó
com mais frequência do que nosso protagonista é capaz de imaginar. Mas a culpa,
talvez, não seja só dele. Nosso protagonista sem rosto, nome ou sobrenome, só
está fazendo o que seu instinto manda. Só está querendo salvar a si mesmo ao
invés de se afundar mais em suas próprias ruínas.
Nosso protagonista não vive.
Só sobrevive se alimentando de almas como ele. Até quando? Não sei. Ninguém
sabe ao certo. O que eu sei é que ele, muito provavelmente, não vai parar de se
procurar em cada par de olhos diferentes que encontrar pela rua.
E era uma vez uma multidão
de pessoas solitárias, melancólicas, que vagam pelo mundo procurando algo que
as complete, que traga sentido às suas milhares de vidas e que as faça se
sentirem humanas depois de… Não sei. Já faz tanto tempo que eu me esqueci.
Enfim…
Era uma vez uma multidão de
pessoas sem alma.
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