Anônimo, do Carandiru (As almas - 2)

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Anônimo, do Carandiru (As almas - 2)




O massacre do Carandiru ocorreu no ano de 1992 e durou cerca de vinte minutos. Cento e onze presos do pavilhão nº 9 morreram, grande parte por ferimentos de bala. Dados históricos informam que nenhum dos policiais feridos foi baleado. Há quem diga que os presos haviam jogado todas as armas brancas pelas janelas quando a Polícia Militar chegou. Talvez, o ponto que gera mais revolta para os familiares seja o de que a grande maioria dos mortos ainda aguardava o julgamento.

O relato a seguir é de uma das almas que habitam as ruínas do que antes foi a Casa de Detenção de São Paulo e vaga pelos corredores do pavilhão 9 em busca de vingança. Ou justiça.

Chamam isto de casa de detenção. Chamam isto de instrumento de correção de indivíduos infratores. Chamam isto de justiça.

Meus passos não mais ecoam pelas paredes desbotadas e minha voz não é mais ouvida através das grades que dividem as celas no mundo material. Tudo o que eu escuto, cheiro ou sinto são reflexos das minhas torpes e embaçadas lembranças. Na verdade, nem as grades me prendem mais. Minha cela é o prédio inteiro, de onde eu não posso mais fugir. Meu inferno particular se transformou na minha lápide pelo resto da eternidade.

Chamam isto de “outro mundo”. Chamam de além. Chamam isto de vida após a morte. Alguns chamam de justiça.

Os gritos de todas as almas que aqui padeceram enchem meus ouvidos e se confundem com a minha própria sofrida agonia. Eu olhei em seus olhos; eu olhei diretamente em seus olhos e pedi por misericórdia, implorei por um segundo sequer de hesitação, de compaixão. Eu olhei para o cano da metralhadora e ganhei dez balas cravadas em meu corpo, a maior parte na cabeça.

As paredes rachadas, o piso marcado por pegadas de sangue seco, o cheiro fétido, velho e pútrido que habita cada cela só não se grudou em mim porque não tenho mais cheiro ou corpo. Ou qualquer outra coisa além da minha dor, que é a única coisa capaz de alimentar meu desejo de vingança. E dor é a única coisa que existe por aqui.

Alguns chamam de justiça. Eu chamo de solidão, de inferno.

Cada um de nós se perdeu nos cacos das próprias mentes, cada um de nós procura resquícios das próprias lembranças em cada uma das celas, cada um de nós busca coisas que temos a certeza de que nunca encontraremos. Fomos presos, condenados a ficar dentro dessas paredes por alguns anos, e então fomos encarcerados pelo resto da eternidade.

Meu corpo não mais se encontra na minha antiga cela, mas ainda posso vê-lo. Nu, com dez buracos de bala em seu rosto e torso, sendo arrastado pelos outros que tiveram menos sorte que eu e sobreviveram ao inferno. A cena final se repete na frente dos meus olhos o tempo inteiro. E ninguém pode desligar o replay.

Preso nesse corpo de vinte ou quarenta anos, usando os mesmos trapos rasgados de dez, quinze ou vinte anos atrás e andando pelos mesmos corredores que dezenas, centenas de presos também andaram e andam diariamente. Descanso não é algo que eu conheça. Mas a vingança tem um gosto que eu quero sentir.

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