Anônimo, do Carandiru (As almas - 2)
O massacre do Carandiru
ocorreu no ano de 1992 e durou cerca de vinte minutos. Cento e onze presos do
pavilhão nº 9 morreram, grande parte por ferimentos de bala. Dados históricos
informam que nenhum dos policiais feridos foi baleado. Há quem diga que os
presos haviam jogado todas as armas brancas pelas janelas quando a Polícia
Militar chegou. Talvez, o ponto que gera mais revolta para os familiares seja o
de que a grande maioria dos mortos ainda aguardava o julgamento.
O relato a seguir é de
uma das almas que habitam as ruínas do que antes foi a Casa de Detenção de São
Paulo e vaga pelos corredores do pavilhão 9 em busca de vingança. Ou justiça.
Chamam
isto de casa de detenção. Chamam isto de instrumento de correção de indivíduos
infratores. Chamam isto de justiça.
Meus
passos não mais ecoam pelas paredes desbotadas e minha voz não é mais ouvida
através das grades que dividem as celas no mundo material. Tudo o que eu
escuto, cheiro ou sinto são reflexos das minhas torpes e embaçadas lembranças.
Na verdade, nem as grades me prendem mais. Minha cela é o prédio inteiro, de onde
eu não posso mais fugir. Meu inferno particular se transformou na minha lápide
pelo resto da eternidade.
Chamam
isto de “outro mundo”. Chamam de além. Chamam isto de vida após a morte. Alguns
chamam de justiça.
Os
gritos de todas as almas que aqui padeceram enchem meus ouvidos e se confundem
com a minha própria sofrida agonia. Eu olhei em seus olhos; eu olhei
diretamente em seus olhos e pedi por misericórdia, implorei por um segundo
sequer de hesitação, de compaixão. Eu olhei para o cano da metralhadora e
ganhei dez balas cravadas em meu corpo, a maior parte na cabeça.
As
paredes rachadas, o piso marcado por pegadas de sangue seco, o cheiro fétido,
velho e pútrido que habita cada cela só não se grudou em mim porque não tenho
mais cheiro ou corpo. Ou qualquer outra coisa além da minha dor, que é a única
coisa capaz de alimentar meu desejo de vingança. E dor é a única coisa que
existe por aqui.
Alguns
chamam de justiça. Eu chamo de solidão, de inferno.
Cada
um de nós se perdeu nos cacos das próprias mentes, cada um de nós procura
resquícios das próprias lembranças em cada uma das celas, cada um de nós busca
coisas que temos a certeza de que nunca encontraremos. Fomos presos, condenados
a ficar dentro dessas paredes por alguns anos, e então fomos encarcerados pelo
resto da eternidade.
Meu
corpo não mais se encontra na minha antiga cela, mas ainda posso vê-lo. Nu, com
dez buracos de bala em seu rosto e torso, sendo arrastado pelos outros que
tiveram menos sorte que eu e sobreviveram ao inferno. A cena final se repete na
frente dos meus olhos o tempo inteiro. E ninguém pode desligar o replay.
Preso
nesse corpo de vinte ou quarenta anos, usando os mesmos trapos rasgados de dez,
quinze ou vinte anos atrás e andando pelos mesmos corredores que dezenas,
centenas de presos também andaram e andam diariamente. Descanso não é algo que
eu conheça. Mas a vingança tem um gosto que eu quero sentir.
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