Anônima, de realengo (As almas - 3)

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Anônima, de realengo (As almas - 3)



O massacre de Realengo aconteceu na manhã do dia sete de abril de 2011, quando um homem de vinte e três anos entrou numa escola, na capital do Rio de Janeiro, e executou doze adolescentes entre treze e dezesseis anos. Dez, das doze vítimas, eram meninas. Relatos afirmam que o assassino colocava a arma na cabeça delas e se referia as adolescentes como sendo seres impuros. Na tentativa de ser impedido de matar mais pessoas, o assassino foi baleado na perna e no tórax e, ao cair no chão, atirou na própria cabeça.

O relato a seguir é de uma das almas que habitam a Escola Municipal Tasso da Silveira no bairro Realengo, na cidade do Rio de Janeiro, e vaga pelos corredores da instituição acadêmica em busca de vingança. Ou justiça.

Eles passam pelos corredores o tempo inteiro, mas ninguém nos vê. Ninguém mais se importa. Eles passam o tempo inteiro, mas ninguém mais se lembra do ocorrido além de nós mesmos. Alguns ainda comentam, mas, com o tempo, tenho certeza de que tudo vai passar e nossa morte será só mais uma lembrança trágica na mente dos ex-alunos desse lugar. Nossos familiares também vão passar a se lembrar cada vez com menos frequência ou saudade.

O homem apontou a arma para a minha cabeça e disse coisas como “Deus”, “pureza” e “religião”. Pelo que entendi, ele fazia aquilo buscando um fim santo, talvez fosse por um lugar no céu onde moram mil virgens feitas especialmente para servi-lo... Como nas cruzadas e como os kamikazes que a professora de história explicou certa vez.

Mas qual a ligação daquilo tudo comigo? Por que eu? Por que logo na minha sala? Dentre tantas outras, a escolhida para ter uma existência desgraçada fui eu. Falta de sorte ou acaso? Se tudo acontece por um motivo, por que eu ainda estou aqui?

Gritos ainda preenchem todas as salas, mas os gritos mais altos foram os meus, naquele dia em que eu o vi pela primeira vez. Seu rosto era moreno e seus olhos estavam repletos de sofrimento, como se ele sentisse muito pelo que fazia. Como se eu acreditasse no seu pedido de desculpas...

Alguns dizem que ele vagou um tempo por essas paredes e então foi para algum outro lugar, o inferno, talvez, já que se matou. Eu não sei se acredito. Estamos presos onde morremos. E ele?

Aqui moram outros onze fantasmas. Ou espíritos. Ainda não sabemos como nos chamar. Não concordamos em muitas coisas, mas a revolta por ter a vida rompida tão cedo é o sentimento que nos une. Não somos amigos, nem em vida fomos, mas nos reunimos para buscar algum tipo de diversão. Seja assustando os alunos no banheiro ou procurando pelo filho da puta que nos matou sem motivo. Cada um se vira com aquilo que tem, não?

E eu continuo vasculhando cada canto deste edifício. Continuo buscando pegadas inexistentes e ouvindo ecos de outra dimensão. Ainda quero todos os órgãos dele na minha mão.

Presa neste corpo de treze, catorze ou quinze anos, usando o mesmo uniforme de um, ou três ou cinco anos atrás e andando pelos mesmos corredores que dezenas, centenas, milhares de alunos também andaram e andam diariamente. Descanso e paz não são coisas que eu conheço. Mas a vingança tem um gosto que eu quero sentir.

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