Anônima, de realengo (As almas - 3)
O massacre de Realengo
aconteceu na manhã do dia sete de abril de 2011, quando um homem de vinte e
três anos entrou numa escola, na capital do Rio de Janeiro, e executou doze
adolescentes entre treze e dezesseis anos. Dez, das doze vítimas, eram meninas.
Relatos afirmam que o assassino colocava a arma na cabeça delas e se referia as
adolescentes como sendo seres impuros. Na tentativa de ser impedido de matar
mais pessoas, o assassino foi baleado na perna e no tórax e, ao cair no chão,
atirou na própria cabeça.
O relato a seguir é de
uma das almas que habitam a Escola Municipal Tasso da Silveira no bairro
Realengo, na cidade do Rio de Janeiro, e vaga pelos corredores da instituição
acadêmica em busca de vingança. Ou justiça.
Eles
passam pelos corredores o tempo inteiro, mas ninguém nos vê. Ninguém mais se
importa. Eles passam o tempo inteiro, mas ninguém mais se lembra do ocorrido
além de nós mesmos. Alguns ainda comentam, mas, com o tempo, tenho certeza de
que tudo vai passar e nossa morte será só mais uma lembrança trágica na mente
dos ex-alunos desse lugar. Nossos familiares também vão passar a se lembrar
cada vez com menos frequência ou saudade.
O
homem apontou a arma para a minha cabeça e disse coisas como “Deus”, “pureza” e
“religião”. Pelo que entendi, ele fazia aquilo buscando um fim santo, talvez
fosse por um lugar no céu onde moram mil virgens feitas especialmente para
servi-lo... Como nas cruzadas e como os kamikazes que a professora de história
explicou certa vez.
Mas
qual a ligação daquilo tudo comigo? Por que eu? Por que logo na minha sala?
Dentre tantas outras, a escolhida para ter uma existência desgraçada fui eu.
Falta de sorte ou acaso? Se tudo acontece por um motivo, por que eu ainda estou
aqui?
Gritos
ainda preenchem todas as salas, mas os gritos mais altos foram os meus, naquele
dia em que eu o vi pela primeira vez. Seu rosto era moreno e seus olhos estavam
repletos de sofrimento, como se ele sentisse muito pelo que fazia. Como se eu
acreditasse no seu pedido de desculpas...
Alguns
dizem que ele vagou um tempo por essas paredes e então foi para algum outro
lugar, o inferno, talvez, já que se matou. Eu não sei se acredito. Estamos
presos onde morremos. E ele?
Aqui
moram outros onze fantasmas. Ou espíritos. Ainda não sabemos como nos chamar.
Não concordamos em muitas coisas, mas a revolta por ter a vida rompida tão cedo
é o sentimento que nos une. Não somos amigos, nem em vida fomos, mas nos
reunimos para buscar algum tipo de diversão. Seja assustando os alunos no
banheiro ou procurando pelo filho da puta que nos matou sem motivo. Cada um se
vira com aquilo que tem, não?
E
eu continuo vasculhando cada canto deste edifício. Continuo buscando pegadas
inexistentes e ouvindo ecos de outra dimensão. Ainda quero todos os órgãos dele
na minha mão.
Presa
neste corpo de treze, catorze ou quinze anos, usando o mesmo uniforme de um, ou
três ou cinco anos atrás e andando pelos mesmos corredores que dezenas,
centenas, milhares de alunos também andaram e andam diariamente. Descanso e paz
não são coisas que eu conheço. Mas a vingança tem um gosto que eu quero sentir.
0 comentários :
Postar um comentário