Anônima, de Barbacena (As almas - 1)

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Anônima, de Barbacena (As almas - 1)




Fundado em 1903, o Hospital Colônia de Barbacena, primeiro hospital psiquiátrico de Minas Gerais, foi palco do que hoje é chamado de Holocausto Brasileiro. Com capacidade para duzentos leitos, o hospital, teoricamente sanatório para tratamento de tuberculose, foi lar de mais de cinco mil pessoas das quais mais de setenta por cento não sofriam de tuberculose ou doença mental alguma, mas sim foram abandonados pela família por serem mães solteiras, crianças com deficiência física ou que tinham vários outros “defeitos” diagnosticados pelos parentes. Estima-se que mais de sessenta mil pessoas morreram dentro daquelas paredes até a década de 60.

O relato a seguir foi psicografado por uma das almas que habitam o que hoje é chamado de Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena e vaga pelos corredores em busca de vingança. Ou justiça.


Ao contrário da maior parte das outras pessoas que dividem minha morada, eu me lembro de como vim parar aqui. Lembro-me do motivo, da época, lembro-me de como o céu estava estrelado na madrugada de 1949 e de como o vento frio lançava meus longos cabelos para trás.

Minha família não poderia aceitar uma mãe solteira entre eles. Não tinham condições para alimentar mais uma boca por causa da falência e sua alta posição social só era mantida sobre alicerces fortes da honra dos meus pais. Nós éramos pessoas de bem, de boa família, bem-sucedidas e que tinham um importante lugar de destaque na sociedade paulista. Até eu engravidar de um dos empregados do meu pai.

E aqui vim parar. No meio de centenas de pessoas com os mais variados problemas que não tinham problema nenhum na verdade. A maior parte eram seres injustiçados que foram jogados ali simplesmente por não serem amados pela família. Crianças, idosos, jovens e adultos... Qualquer tipo de defeito ou má formação que alguém tivesse era motivo para ser condenado ao mais degradante fim. Seja ele de frio, fome ou vítima dos experimentos desumanos que os médicos faziam com os pacientes, com as pessoas que eles deveriam proteger e cuidar. Ninguém ali precisava de tratamento, mas todos nós éramos obrigados a aceita-lo.

Foi durante uma dessas experiências loucas que eu morri. Levaram-me para uma sala de paredes encardidas onde diversos instrumentos tomavam o pouco espaço que havia ali dentro. Amarraram-me numa cadeira e disseram que o que fariam seria a cura para a minha loucura. Àquela altura, eu não mais sabia se estava louca ou não. Talvez eu estivesse. Talvez eu houvesse apenas imaginado minha filha recém-nascida morrendo esmagada por uma pilha de corpos nus e congelados. Senti uma corrente elétrica atravessar o meu corpo. Depois outra e mais outra... Até eu perder a conta de quantas foram. Até eu perceber que não mais estava dentro do meu próprio corpo.

Não fui a primeira, muito menos a última. Depois de mim, dezenas de outros “experimentos” deram errado e foram jogados do lado de fora do sanatório, no esgoto a céu aberto de onde os internos buscavam água. Eu sou e fui só mais uma das centenas de almas que morreram no mesmo quarto de paredes encardidas.

Ainda consigo ouvir seus lamentos, consigo sentir seu desespero ecoando por anos e anos de tortura, de maus tratos e de dor. Enquanto caminho pelos corredores recentemente limpos, me lembro de como eram as faces de alguns dos seres que ainda estão vivos e vivem aqui, se é que eles tinham alguma.

Os idosos que hoje dividem o espaço com as dezenas de almas que morreram dentro dessas mesmas paredes, sobreviveram ao frio, fome, experiências e vários outros tipos de condições de vida degradante, mas não sabem me dizer onde está a minha filha. Espero que ela esteja no céu, me disseram uma vez que é para lá que os anjos vão.

Entretanto, algumas das crianças que aqui nasceram, até hoje rastejam no chão por nunca terem aprendido a andar e suas bocas produzem alguns sons estranhos por nunca terem aprendido a conversar. Não sei se minha menina está entre eles e nem consigo reconhecer seus cabelos loiros como os do pai ou seus olhos tão azuis quanto os meus. Na verdade, não sei se eram realmente azul o seu olhar ou se ela era loira. São apenas suposições de uma semi-existência solitária e louca.

Alguns dos vivos, os que estão mais perto da morte, conseguem sentir minha presença enquanto vago de quarto em quarto. Não só a minha, mas eles sentem o frio, e o desejo de vingança de todas as outras almas que vivem neste pedaço de terra que ficou pequeno demais para tantos espíritos.

Presa neste corpo invisível de vinte ou quarenta anos, usando os mesmos trapos rasgados de cinquenta, sessenta ou setenta anos atrás e andando pelos mesmos corredores que dezenas, centenas de pessoas também andaram e andam diariamente. Descanso não é algo que eu conheça. Mas a vingança tem um gosto que eu quero sentir.


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