Recém nascido
Era uma daquelas noites em que até os ratos
desistem de procurar comida e se encolhem uns contra os outros dentro das
caixas de esgoto. O frio cortante se materializava no hálito de quem se
aventurava pelas ruas e nem os melhores casacos ofereciam abrigo. Era uma
daquelas noites em que os bons pais se sentam na beirada da cama dos filhos
para contar histórias e os maus progenitores se perdem – ou se encontram – numa
garrafa de bebida. A mulher sem nome, que gemia em um dos muitos becos da
cidade, tinha certeza que o pai do seu filho era um dos piores do mundo. Ele
não fazia ideia de que ela estava grávida e, muito menos, que daria a luz em
alguns minutos.
A moça se lembrava apenas do cheiro pútrido que
ele exalava e mais nada. Esquecera seu rosto, nunca soube seu nome e nem haviam
se encontrado depois daquilo.
Só se lembrou do ocorrido alguns meses depois,
quando uma coisa começou a chutar sua barriga que ficava maior a cada dia que
passava. Procurou uma daquelas mulheres que tiravam o incômodo de dentro das
grávidas, mas ela falhou e disse que, se tentasse novamente, morreriam mãe e
filho. Por menor que fosse sua vontade de parir o fruto de um ser desconhecido,
não queria morrer. Não gostava de morar na rua e, por isso, uma calçada
qualquer não parecia ser um bom leito de morte.
E agora estava ali, sentada num beco escuro e
úmido, gemendo e sentindo mais dor do que um ser humano seria capaz de
suportar. Pelo menos era o que parecia. As contrações vinham sem intervalo
algum agora e a força que fazia para expulsar o bebê era automática. Alguns
chamariam de instinto maternal, ela chamava de autopreservação.
Seu corpo tremia e ela não sabia se por medo,
dor ou frio. Talvez uma mistura dos três, todas as coisas que acompanhavam seus
dias. Além da fome, é claro. Como ela iria cuidar de uma criança era um
problema a ser resolvido, mas, primeiro, o bebê deveria sair. Depois ele
comeria – ou passaria fome, como a mãe.
É possível que algumas pessoas tivessem passado
pela rua, olhado para a figura deitada no chão e sentido algum resquício de
pena e uma boa dose de nojo. Mas nenhuma delas se dignou a se abaixar um pouco
e examinar o que acontecia ali. Ninguém se interessou pelo choro de criança que
invadia os ouvidos de uma mulher semi acordada. Nem mesmo se atentou para o
fato de que a moça deitada no chão suava, apesar da neve que caía do céu.
Em algum lugar da sua mente, ela sabia que o
bebê chorava e que seria melhor cortar o cordão umbilical. Ela entendia que ele
estava congelando e que o certo seria enrolá-lo em cobertores para que a
criança não morresse de frio. Mas ela não tinha cobertores, tampouco forças
para se erguer e pegá-lo nos braços. O cansaço era demais e a dor... A dor era
insuportável. Fechou os olhos. Talvez, com o tempo, tudo acabasse.
Acordou algum tempo
depois sem saber se haviam se passado minutos, horas ou vidas. Seus ossos
doíam, seu corpo inteiro tremia e as lágrimas e o suor haviam congelado e
formado uma fina camada de gelo em sua pele. Alguma coisa a impedia de fechar
as pernas. Ela firmou as mãos no chão e impulsionou o corpo dormente para uma
tentativa desajeitada de se sentar. Olhou para baixo e viu o corpo do ser que
havia nascido há algum tempo. Quanto tempo havia se passado? Minutos, horas?
Uma vida, certamente. Mas o tempo? Depende. Quanto tempo demora para um recém-nascido
congelar?
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