Entre três paredes e um espelho
Numa sala de interrogatório,
um homem com cerca de 30 anos encara um policial fardado. Seu rosto é calmo ao
esperar pelo promotor de justiça. Não é o rosto de alguém frio, pelo contrário.
É a expressão de uma pessoa que se sente em paz.
O policial sabe que ele matou
uma mulher. Sua companheira, pelo que entendeu. O homem jogou o caminhão em
cima dela e continuou passando com o veículo em cima da sua cabeça diversas
vezes seguidas, até ter certeza de que ela morreu.
- Ela morreu, não foi? - O
homem perguntou. – Eu verifiquei antes de chamar a polícia e os outros
policiais confirmaram há alguns minutos. Eu recebi a notícia e fiquei aliviado.
Estou livre de uma louca que me perseguia por todos os lugares possíveis.
“Não me entenda mal, eu não
queria que ela tivesse morrido. Mas ela precisava morrer. Para que eu
conseguisse viver em paz. Aquela louca obsessiva queria que eu vivesse embaixo
dos seus pés, queria que eu não conseguisse viver sem ela, que ela fosse tudo o
que povoa meus pensamentos e, o pior, ela sempre me forçava a implorar por
tê-la mais perto quando eu só queria distância.”
“Acha que é fácil viver com
uma louca assim? Acha que eu sou um filho da puta insensível por matá-la? Então
me diz o que você faria no meu lugar. Me diga se não iria jogar um caminhão em
cima dela assim como eu fiz. Talvez fizesse pior. Bem pior. Você parece ser do
tipo que pega um alicate e arranca todas as unhas de uma pessoa até conseguir o
que quer.”
“Por isso eu digo: não sou
inocente. Mas o assassinato foi cometido em legítima defesa da minha sanidade!
Ela invadiu meu casamento, ameaçou minha sogra e sequestrou meu filho. Em troca
dele, eu deveria viver junto dela. Até que ela passou dos limites e disse que
iria trabalhar para sustentar a casa, já que eu estava preso num dos quartos.”
“O plano seria aceitável (no
sentido mais doentio da palavra) se aquela maluca não inventasse de ser
prostituta. Pior ainda: depois da primeira noite de trabalho (e da minha
tentativa de fuga) ela disse que eu deveria ir junto porque não se sentia bem
fazendo o que fazia longe de mim. Ok, ficando fora de casa era mais fácil de
fugir, concordo, mas as ameaças à minha família só pioraram.”
O assassino parou de falar e
respirou fundo algumas vezes, como se houvesse vomitado tudo o que guardava no
estômago de uma vez só. O policial, ainda quieto, no canto da sala, pedindo
para nãos ser notado, pensava em tudo o que tinha ouvido e chegou à conclusão
de que já conhecera pessoas malucas o suficiente na vida.
Alguns minutos em silêncio se
passaram sem que o promotor chegasse. Os dois homens já suavam dentro da sala
sem ar condicionado e as pálpebras do soldado começaram a ficar pesadas. Como
sua mente vagava por lugares que envolviam uma cerca e vários carneirinhos
pulando, levou um susto e deu um pulo quando o preso recomeçou a falar:
- Eu não conseguia nem dormir.
Toda noite ela poderia me amarrar e fazer novas ameaças. Ela dizia que me
amava, mas quem garante que não escondia uma faca debaixo da manga ou no decote?
Eu estava enlouquecendo. Tanto que, durante o dia, chegava a sonhar que estava
em casa, com a minha esposa e meu filho. A fantasia era boa até a hora em que a
louca abria a porta do quarto e me usava mais uma vez como cobaia dos seus
experimentos carnais.
“É claro que não era só sobre
sexo e viagra, que ela me enfiava pela boca à força. Ainda tinha teatro de
noivado, casamento, ensaio de maternidade, formatura dos nossos filhos, segunda
lua de mel e por aí vai.”
O acusado sorriu. Como se, de
repente, tivesse se lembrado de uma coisa boa, e continuou:
- Mas acabou. Ela não vai mais
me incomodar. E nem ameaçar minha família.
O silêncio que veio a seguir
se prolongou por muito tempo. Tempo demais. Tanto tempo que o policial levantou
a cabeça e se obrigou a encarar os olhos do assassino. Eles estavam
arregalados, congelados num momento indefinido. Um filete de sangue saia da sua
boca e o rosto estava deitado na mesa fria, imóvel. Sua face dava a impressão
de morta e sua expressão sugeria que a causa do falecimento havia sido susto.
Desesperado, o soldado pediu
para chamarem uma ambulância antes mesmo de checar os sinais vitais. Ninguém
viu o que aconteceu e nem mesmo as câmeras da sala de interrogatório
registraram muita coisa. Apenas o preso entrando em colapso sem motivo algum,
enquanto olhava fixamente para o espelho.
Quando os médicos conseguiram
fazer com que o homem falasse, só duas frases saíam dos lábios pálidos:
- Ela me convidou para o
enterro. Eu tenho que fingir me importar.
E, até hoje, ninguém sabe o
que aconteceu.
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