Rotina

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Rotina



Todo dia ela se sentava na mesma mesa, pedia um cappuccino duplo e lia umas dez páginas de um livro enquanto esperava esfriar. Ficava tão entretida que depois de ler mais umas cinco páginas é que se lembrava de dar o segundo gole. A essa altura o cappuccino já estava frio e ela vinha até o balcão, pedir, sem graça, que o esquentasse ao menos um pouquinho.

Um dia, aproveitar o cappuccino deixou de ser uma ritual solitário. Ele apareceu, sentou-se ao seu lado e eles começaram a conversar. Até onde eu sei, não se conheciam. E desde então eles se encontravam ali, depois da décima página. Passavam horas conversando, até que ele se lembrava de que ainda não havia feito o pedido. Ele vinha até o balcão, fazia seu pedido e me entregava o cappuccino. Sem graça, me pedia para esquentar.

Ficaram um tempo sem aparecer, aqueles dois do cappuccino frio. Alguns dias, semanas, talvez. Quando voltaram, o brilho dos olhos ofuscava o do ouro no dedo. E, todos os dias, entravam, se sentavam e deixavam o cappuccino esfriar. Nem sempre sorriam, algumas vezes brigavam, mas acho que o café tinha um certo ar de reconciliação. Não importava como chegassem, sempre saíam sorrindo.

E eu a vi engordar, aos poucos. Seus braços engordaram, suas pernas incharam, suas olheiras aumentaram e sua barriga cresceu. Ele também engordou. Dizia, brincalhão, que não queria deixar a mulher engordar sozinha. A essa altura ela não vinha até o balcão pedir para esquentar o cappuccino, eu era quem ia até a mesa.  Estava tão pesada que mal conseguia andar, reclamava.

Ficaram mais um tempo sem aparecer. Dessa vez a pausa foi tão longa que eu pensei que tinham se mudado. Até que ela apareceu, segurou a porta para que ele passasse com o carrinho. Sorri. Dessa vez ela me trouxe a mamadeira e perguntou se poderia me incomodar de novo, mas com outra coisa.

O tempo foi passando, como sempre faz, e eles foram envelhecendo, se desentendendo e fazendo as pazes poucos minutos depois de brigarem. O carrinho foi doado para alguma mãe de primeira viagem, me contaram. E a criança trazia um novo brinquedo a cada dia. Não gostava de cappuccino, como a mãe, preferia o chá preto do pai. Sem açúcar, coisa que nenhum dos progenitores entendiam.

Todos os dias, antes da aula e do trabalho, os três vinham, tomavam café – e cappuccino - e se despediam. Sorriam, brincavam e a menina esfregava os olhos, com sono. Eu perguntava como seria o dia e ela me respondia com um sorriso enquanto pai e filha diziam, em uníssono, “cansativo”.

E foi assim por mais um tempo, muitos anos. Num dia estavam com os cabelos brancos e voltaram só os dois. A filha foi estudar fora, explicaram. Ele não ia mais para o trabalho e ela voltou a deixar o cappuccino esfriar. Os livros ficaram com as letras maiores, culpa dos óculos que sempre se recusou a usar. Demoravam mais para se levantar e a porta foi ficando mais pesada, até que nenhum dos dois nunca mais veio me visitar.

Mas um dia eu a vi. Parecia um pouco mais nova, os cabelos ficaram novamente longos e escuros, mas o sorriso e a covinha do lado esquerdo não haviam mudado. Pediu um cappuccino, levou para a mesa e abriu uma velha máquina de escrever. Cochilei por um momento e, quando acordei, ela me mostrava a caneca e me perguntava, meio sem jeito, se eu poderia esquentar.

Sorri, me dando conta de que algumas coisas não mudam. Não importa o tempo que passe.

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