O fantasma de Saigon

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

O fantasma de Saigon


As mães contam aos filhos a história de um fantasma que vaga pela cidade à procura dos restos mortais de um homem que foi vítima de um bombardeio em 1970. Segundo a lenda, os pedaços do sargento Aaron, de sobrenome desconhecido, foram lançados ao acaso quando a bomba atingiu-o em cheio. Desde então, Loan, sua namorada vietnamita, que morreu queimada no mesmo dia, procura os pedaços do americano para que ele possa ter, no mínimo, um enterro decente, já que não virou um fantasma, ao contrário da maior parte das pessoas.

As explicações para o sumiço de Aaron são diversas. A mais aceita é a de que, ao ver Loan morrer, o espírito, bem como o corpo do soldado, foi completamente destruído e seus pedaços foram lançados aos quatro cantos da cidade. Existe também a teoria de que Loan tem contas a acertar na terra antes de ir para o paraíso se encontrar com o amado.

A única coisa sobre a qual todos concordam é que Aaron sumiu. Tanto em corpo, como em alma.

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Saigon nunca me pareceu tão deserta, tão fria ou tão... Morta. Enquanto obrigava meus pés continuarem pelo caminho doloroso, imaginava como eu poderia dizer o que tinha de ser dito da melhor forma possível. Sem ressentimentos, eu queria, mas nunca cheguei a acreditar realmente nisso.

Cada passo, uma tortura. O frio me atingia de dentro para fora e o sol quente nada fazia para aplacá-lo. E nem poderia. Meu coração esmagado nunca mais poderia ser requentado. Ou reconstruído.

Naquele momento, eu só conseguia implorar para que meus pés não empacassem em algum lugar entre a covardia e a tristeza. Dizem que tempos difíceis pedem decisões difíceis e eu esperava que Aaron fosse capaz de entender o quão torturante havia sido tomar a iniciativa de dar um definitivo fim ao nosso amor.

Nós nunca poderíamos ficar juntos. Mesmo que não houvesse uma guerra explodindo em meu país, mesmo que os americanos não praticassem tantos atos de crueldade contra meu povo, mesmo que não fôssemos de países rivais. Ainda que todos esses obstáculos fossem quebrados, sempre haveria um mundo inteiro entre nós dois.

Nosso exército estava ganhando, é verdade, mas o horror da guerra nunca poderia ser apagado com uma vitória. Em sua raiva insana, os soldados americanos faziam de tudo para causar mais sofrimento do que o que eles sentiam, mais dor do que seus irmãos falecidos suportaram.

Não vou citar os diferentes tipos de atrocidades que eles cometiam porque não quero – e nem preciso - me lembrar. Mas a questão principal era que Aaron era diferente. Talvez ele pudesse ter se transformado no futuro, mas, naquele tempo, Aaron era um anjo. O meu anjo. O homem que me salvou dos seus próprios companheiros, que foi contra o próprio exército por mim. Meu herói.

Eu o amava. Amava-o com todas as forças que são capazes de existir no coração de uma adolescente vietnamita no meio da mais sangrenta guerra do seu país. Eu o amava com a incessante carência de uma mulher marcada por tragédias demais para suportar sem se despedaçar. Eu o amava com todo o resto de inocência que meu coração abrigava.

Entretanto, nunca fomos feitos para dar certo. Eu tinha consciência disso. Amar Aaron era um erro e planejar, sonhar viver com ele era inaceitável. Impossível, até.

E era por isso que eu obrigava minhas pernas a se mexerem mesmo quando meu corpo inteiro protestava devido às diversas lacerações que sofri desde o primeiro dia da queda de Saigon. Os cortes, resultado da tortura incessante dos americanos, ainda sangravam. E doíam como o inferno. Seria mais fácil ficar em casa esperando o próximo bombardeio, mas eu precisava protegê-lo. Eu precisava colocar um fim no que nunca deveria ter começado.

Minha mente já havia guardado todos os argumentos, todas as frases decoradas na minha cabeça. As últimas palavras haviam sido ensaiadas diversas vezes no espelho. Era o nosso último momento juntos.

Só que eu estava errada. Nosso amor havia sim nascido para morrer, mas não seria eu a sua assassina. O contexto mundial influenciava nossas vidas e nunca poderia ter sido diferente para nós dois. Fomos vítimas do infeliz acaso que sempre permeia uma guerra.

Estávamos há uns cinco metros um do outro quando o estrondo ecoou. O céu ficou cinza de repente e o sol, de alguma forma, se apagou. Poeira encheu meu campo de visão ofuscando, por um instante, seu sorriso branco.

E então eu vi os olhos azuis de Aaron se arregalarem. Eu vi seus lábios finos se abrirem num espantado “o”. Eu vi o sangue, ouvi os gritos, eu senti o impacto e voei para longe. Eu solucei por causa da dor e olhei para baixo apenas para ver meu próprio corpo em chamas. Eu olhei em seus olhos e disse “eu te amo” antes de vê-lo explodir em mil pedaços.


Eu perdi Aaron. E preciso encontrá-lo.

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