O fantasma de Saigon
As mães contam aos filhos a
história de um fantasma que vaga pela cidade à procura dos restos mortais de um
homem que foi vítima de um bombardeio em 1970. Segundo a lenda, os pedaços do
sargento Aaron, de sobrenome desconhecido, foram lançados ao acaso quando a
bomba atingiu-o em cheio. Desde então, Loan, sua namorada vietnamita, que
morreu queimada no mesmo dia, procura os pedaços do americano para que ele
possa ter, no mínimo, um enterro decente, já que não virou um fantasma, ao
contrário da maior parte das pessoas.
As explicações para o sumiço
de Aaron são diversas. A mais aceita é a de que, ao ver Loan morrer, o
espírito, bem como o corpo do soldado, foi completamente destruído e seus
pedaços foram lançados aos quatro cantos da cidade. Existe também a teoria de
que Loan tem contas a acertar na terra antes de ir para o paraíso se encontrar
com o amado.
A única coisa sobre a qual
todos concordam é que Aaron sumiu. Tanto em corpo, como em alma.
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Saigon nunca me pareceu tão
deserta, tão fria ou tão... Morta. Enquanto obrigava meus pés continuarem pelo
caminho doloroso, imaginava como eu poderia dizer o que tinha de ser dito da
melhor forma possível. Sem ressentimentos, eu queria, mas nunca cheguei a
acreditar realmente nisso.
Cada passo, uma tortura. O
frio me atingia de dentro para fora e o sol quente nada fazia para aplacá-lo. E
nem poderia. Meu coração esmagado nunca mais poderia ser requentado. Ou
reconstruído.
Naquele momento, eu só
conseguia implorar para que meus pés não empacassem em algum lugar entre a
covardia e a tristeza. Dizem que tempos difíceis pedem decisões difíceis e eu
esperava que Aaron fosse capaz de entender o quão torturante havia sido tomar a
iniciativa de dar um definitivo fim ao nosso amor.
Nós nunca poderíamos ficar
juntos. Mesmo que não houvesse uma guerra explodindo em meu país, mesmo que os
americanos não praticassem tantos atos de crueldade contra meu povo, mesmo que
não fôssemos de países rivais. Ainda que todos esses obstáculos fossem
quebrados, sempre haveria um mundo inteiro entre nós dois.
Nosso exército estava
ganhando, é verdade, mas o horror da guerra nunca poderia ser apagado com uma
vitória. Em sua raiva insana, os soldados americanos faziam de tudo para causar
mais sofrimento do que o que eles sentiam, mais dor do que seus irmãos
falecidos suportaram.
Não vou citar os diferentes
tipos de atrocidades que eles cometiam porque não quero – e nem preciso - me
lembrar. Mas a questão principal era que Aaron era diferente. Talvez ele
pudesse ter se transformado no futuro, mas, naquele tempo, Aaron era um anjo. O
meu anjo. O homem que me salvou dos seus próprios companheiros, que foi contra
o próprio exército por mim. Meu herói.
Eu o amava. Amava-o com
todas as forças que são capazes de existir no coração de uma adolescente
vietnamita no meio da mais sangrenta guerra do seu país. Eu o amava com a
incessante carência de uma mulher marcada por tragédias demais para suportar
sem se despedaçar. Eu o amava com todo o resto de inocência que meu coração
abrigava.
Entretanto, nunca fomos
feitos para dar certo. Eu tinha consciência disso. Amar Aaron era um erro e
planejar, sonhar viver com ele era inaceitável. Impossível, até.
E era por isso que eu
obrigava minhas pernas a se mexerem mesmo quando meu corpo inteiro protestava
devido às diversas lacerações que sofri desde o primeiro dia da queda de
Saigon. Os cortes, resultado da tortura incessante dos americanos, ainda
sangravam. E doíam como o inferno. Seria mais fácil ficar em casa esperando o
próximo bombardeio, mas eu precisava protegê-lo. Eu precisava colocar um fim no
que nunca deveria ter começado.
Minha mente já havia
guardado todos os argumentos, todas as frases decoradas na minha cabeça. As
últimas palavras haviam sido ensaiadas diversas vezes no espelho. Era o nosso
último momento juntos.
Só que eu estava errada.
Nosso amor havia sim nascido para morrer, mas não seria eu a sua assassina. O
contexto mundial influenciava nossas vidas e nunca poderia ter sido diferente
para nós dois. Fomos vítimas do infeliz acaso que sempre permeia uma guerra.
Estávamos há uns cinco
metros um do outro quando o estrondo ecoou. O céu ficou cinza de repente e o
sol, de alguma forma, se apagou. Poeira encheu meu campo de visão ofuscando,
por um instante, seu sorriso branco.
E então eu vi os olhos azuis
de Aaron se arregalarem. Eu vi seus lábios finos se abrirem num espantado “o”.
Eu vi o sangue, ouvi os gritos, eu senti o impacto e voei para longe. Eu
solucei por causa da dor e olhei para baixo apenas para ver meu próprio corpo
em chamas. Eu olhei em seus olhos e disse “eu te amo” antes de vê-lo explodir
em mil pedaços.
Eu perdi Aaron. E preciso
encontrá-lo.
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