Intragável
É de noite, quando todos os
seres normais se sentam para ver a novela das nove, que você aparece. Sua imagem,
seu rosto retorcido de raiva entra novamente na minha cabeça enquanto as
lágrimas finalmente saem.
Por que não consegui
derramá-las na sua frente? Por que esperei tanto para chorar?
Tantas perguntas sem
respostas, tantas respostas imaginárias que fazem mais lágrimas frias surgirem
por não poder viver num mundo que eu mesma criei e com o qual eu tanto sonhei.
Parece covarde, eu sei, mas a saída que encontrei foi o velho clichê do copo de
bebida barata num bar qualquer. Não é nem de perto tão luxuoso quanto na
televisão. Chega a ser pateticamente ridículo.
Uma mulher de vinte e cinco
anos, seis meses e dois dias derramando suas lágrimas, mágoas e seu quebrado
coração dentro de um copo de whisky que deveria ser ilegal de tão
ruim e barato que é. Talvez eu não esteja fugindo da dor e sim de mim mesma, do
meu erro. Quero esquecer. Esquecer você, nós dois, esquecer tudo o que pode ser
ligado a nós. Esquecer que ela te tem enquanto fui eu que sempre te cuidei. E
eu, que não bebo, estou aqui. Para ficar mais clichê é só dizer que minhas
unhas são testemunhas de um crime sem perdão. Na verdade elas são, mas isso não
vem ao caso. Ou talvez venha, mas eu não consigo mais pensar direito.
Talvez eu devesse ir embora,
talvez eu devesse terminar de beber o resto da garrafa ou talvez eu devesse ir
ao banheiro retocar a maquiagem. Talvez fosse tarde demais para fazer qualquer
uma dessas coisas porque você acabou de entrar neste lugar. Veio me salvar. Que
bela bosta.
Quando foi que invertemos
nossos papéis? Era o contrário. Exatamente o contrário. Era eu quem vinha te
buscar nesse mesmo boteco que só não é pior porque tem música boa. Lembra da
última vez? Você estava enchendo a cara porque ela tinha te colocado para
escanteio e eu vim socorrer meu melhor amigo que derramava seu coração num copo
de alguma bebida que faria mal a qualquer um. Que, por sinal, tinha um péssimo
gosto.
E eu saí da
temida friendzone direto para o campo das rejeitadas, que é tão
temido quanto. Eu disse que era patético. Tudo é patético. Você é patético
por acreditar que ficar comigo poderia te fazer esquecê-la, ela é patética por
te mandar para escanteio, você é patético por me mandar para escanteio sua mãe
é patética por te colocar no mundo e eu sou patética por pensar nisso tudo
quando deveria ir para o banheiro fazer o maior xixi do mundo até você desistir
e ir embora. Merda.
Voltando ao meu monólogo,
semi-consciente de você me pegando no colo, eu não sei o que você faz aqui. Eu já
sabia que você tinha algum problema sério de cabeça. Meu filho, tem uma
loirinha bonitinha e pequenininha querendo seu corpo nu e você está carregando
uma bêbada de coração partido e unhas mal feitas. Você é patético por isso
também. Só não sei se é mais patético por me trocar por ela ou por vir aqui ser
meu salvador montado num carro branco. Por Deus, me solte e me deixe na
calçada. Tenho certeza de que consigo entrar no bar e voltar, sã e salva, para
o meu banco quebrado e meu copo meio vazio. Me deixe experimentar um coma
alcoólico, por favor.
E não passe a mão no meu
rosto enquanto diz coisas reconfortantes. Pelo menos é o que eu imagino que
sejam. Desculpe-me por não conseguir processar as palavras que saem da sua
boca. Meus pensamentos estão trôpegos demais para distinguir suas frases. E
aposto minha vida que minhas pernas também estão trôpegas demais para andar sem
cair de cara no chão e sair rolando pelas escadas do prédio. Obrigada por
me privar disso. Eu acho.
--
Agora a luz do sol fere meus
olhos e os seus estão fundos e com enormes olheiras embaixo. Não dormiu.
Previsível. Você ficou a noite toda e ainda está aqui. E eu não ousaria
imaginar o contrário. Como poderia se é isso o que sempre faz? Você fica.
Sempre fica. Mesmo quando não mereço, mesmo quando sou a pior pessoa do mundo.
E é quando seu celular toca e o nome dela é o que aparece na tela. Você atende,
resmunga alguma coisa inaudível e, olhando para mim como quem pede desculpas,
se despede dela com um "tchau, meu amor".
Ah, merda. Acho que vou
vomitar.
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