Miserável amor

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Miserável amor


Os olhos úmidos se encontraram com os castanhos e mais lágrimas desceram quando ele disse que estaria ali para ajudá-la. Ele não iria embora. Maria Elise não teria que criar uma criança sozinha ou correr o risco de acabar com a própria vida e com a do filho. Em poucos minutos, uma vida inteira passou diante dos olhos molhados. Ela se lembrou de cada instante e, ao sentir o aperto companheiro na mão, sabia que não seria igual. Ambos fariam de tudo para que não fosse.

Desde pequena, aprendera a nunca confiar em ninguém, a nunca se entregar e nem a se permitir repousar em braços alheios. Seu coração era deveras importante para ser entregue a outro ser. A mais árdua lição veio da própria mãe, que se permitira amar demais um homem que ela mal conhecia.

"Afinal", dizia ela, "nunca se conhece alguém bem o suficiente." As lágrimas sempre inundavam o rosto cansado ao contar a história dos infortúnios amorosos. "Seu pai disse que me amava e que ficaria ao meu lado". Uma risada amarga era proferida pelos lábios rachados antes que a voz, já rouca por conta do cigarro, continuasse: "Bastou apenas um positivo para o filho de uma puta me dar um belo de um pé na bunda".

O resto da história Maria Elise havia presenciado e não precisava de nenhuma narração interrompida por tosses histéricas para conhecer o fim. O pai sumiu, a mãe não aguentou a pressão de cuidar de uma criança sozinha e se afundou em drogas, bebidas e tudo que pudesse lhe dar o mínimo de dinheiro possível. Ou aquela maldita última dose que se repetia infinitamente.

A pequena menina, fruto de um relacionamento miserável, cresceu sem amor ou qualquer tipo de afeto. A mãe fora expulsa de casa quando os familiares descobriram a gravidez e sua mente se perdeu. O maior sonho da adolescente Maria Elise era conhecer a mulher sorridente que via nas fotos antigas. Às vezes, a sombra das drogas abandonava o olhar azul fosco dos olhos maternos e a voz ficava um pouco menos detestável ao dizer"eu te amo" para a garota. Mas palavras não valiam de nada. Nunca valeram.

E era por se lembrar de tudo o que já passara que agora chorava. Porque não queria oferecer um amor miserável ao filho. Mas também não queria perdê-lo. Queria se sentir capaz de amar do mesmo modo que ela nunca havia sido amada. Só que não sabia se teria condições, se seria capaz de dar-lhe tudo o que nunca teve. 

O médico que lhe atendera estava com os olhos tranquilos de quem já havia por aquilo diversas vezes enquanto Maria Elise se debulhava em lágrimas, sentimentos e catarro. Não era tristeza por não ter tido uma família, era medo de não ser capaz de construir uma com os tantos remendos que fez no próprio coração.

E então os olhos castanhos do namorado lhe sorriram e a mão forte apertou a sua. E Maria Elise acreditou em finais felizes e reconstrução de almas despedaçadas. Acreditou que era possível.

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