Primavera alemã
Desde quando eu era bem
pequena, Eva me mandou para viver em Munique. Mesmo naquela época, ela já sabia
que eu correria perigo se ficasse perto demais da capital. Ou das pessoas que
lá moravam. Conhecia a natureza de seu companheiro e nada impediria seus
inimigos de me machucarem. Então, para me poupar, minha mãe me mandou para
morar com uma família conhecida de seus pais. Isso não me impedia de saber que
meu pai não queria assumi-la e que ele, provavelmente, nem se lembrava de que
tinha uma filha. Talvez isso fosse bom, eu acho. Ninguém sabia se Adolf Hitler
tinha limites.
Mas eu não conseguia simplesmente
viver à margem de tudo. Não quando pessoas sofriam e uma guerra explodia por
culpa de alguém tão “próximo” a mim. Juntei toda a audácia que acompanha a
adolescência e fui até Berlin. Eu precisava entender as razões do meu pai. Só
não esperava chegar tarde demais.
Era início de abril do ano
de mil novecentos e quarenta e cinco. Alheia aos perigos que cercavam meu
sobrenome com o fim da guerra, decidi que aquilo tudo tinha que parar. Eu já
havia chegado à sede do governo alemão e esperava conseguir uma entrevista
com meu pai o mais rápido possível. O que eu não esperava era que houvesse um homem
no meio do meu caminho. Ainda me lembro de como os olhos verdes pareciam frios
ao me ver pela primeira vez. Não sabia quem ele era, só sabia que não era
alemão.
- O que faz aqui? - Ele
perguntou assim que me aproximei.
- Vim ver o governante. -
Ergui o queixo, convencida. A postura e o tom de voz firme indicavam sua
profissão. O sotaque, sua nacionalidade. Quando foi que os soldados americanos
chegaram? As coisas deveriam estar piores do que eu imaginara, então. Ou não.
Não tinha mais ninguém por perto. Um soldado estrangeiro não deveria ficar
sozinho por ali. Deveria?
- Adolf? - Ele riu quando
hesitei. - Não vai me dizer que quer reclamar pela vida de conhecidos?
- O que quer dizer com isso,
soldado? - Ele não pareceu se importar com a última palavra. Acredito que não
estava disfarçado ou algo do tipo. Mesmo que usasse roupas comuns.
- Sinto muito, senhorita,
mas não adianta. Muitos dos que interferiram morreram. A maior parte deles.
- Ele não vai me matar. -
Ergui uma sobrancelha como se o desafiasse. Acima de tudo, eu era uma ariana.
Seria um absurdo meu próprio pai me matar. Mesmo que ele mal me conhecesse.
- Por que não?
Porque Adolf Hitler era meu
pai? Porque eu era a herdeira do Fuhrer? Por que minha mãe, uma espécie de
concubina do ditador, me protegeria?
Dizer isso certamente não
salvaria a minha vida.
- Isso não te interessa,
americano.
O ódio em seus olhos surgiu
como um raio quando fiz de sua nacionalidade um xingamento.
- Uma moça deveria saber que
não se deve subestimar as pessoas. Muito menos os desconhecidos. - O soldado se
aproximou de mim e só então percebi o quão maior que eu ele era.
Não consegui responder.
Felizmente, ou infelizmente, vários oficiais alemães saíram do Palácio de
Reichstag e ele me puxou pela mão.
- Aonde vai? O que está
fazendo?!
- Te salvando.
Não sei o motivo, apenas fui
para qualquer lugar onde aquele homem desconhecido pudesse me levar.
Droga. Eu não precisava me
esconder. Era filha do fuhrer, não?
Mas algo em meu peito me
disse para fingir ser uma cidadã qualquer. Mais tarde, descobri que o soldado
Smith tinha o dever de matar qualquer pessoa ligada ao governo alemão. Mas foi
só mais tarde que eu encontrei uma desculpa plausível. Naquele momento, apenas
o segui sob o sol da tarde pela cidade morta em busca de abrigo.
- O que queria lá? -
Phillip, esse era seu nome, perguntou. Estávamos sentados numa cafeteria mal
cuidada – ou que havia sido destruída pelos nazistas - que ficava do outro lado
da cidade. Ele olhava para os lados frequentemente e murmurava o tempo inteiro
que algo estava errado. E eu concordava. Para uma época de guerra, tudo estava
calmo demais. Talvez fosse aquela calmaria que sempre vem antes da mais cruel
das tempestades. E era esse era o meu maior medo.
- O que todos querem nesse
momento. - Eu podia ver meu reflexo em seus olhos que já haviam visto demais. -
Um pouco de paz.
Olhei para baixo e examinei
uma flor que havia caído dentro da minha xícara de chá. Rosa, delicada...
Lembrou-me de quando eu era apenas uma criança e ainda vivia em Berlin. Adolf
era apenas um amigo que minha mãe via de vez em quando e não o homem mais
odiado do planeta ou o pai que não me conhecia. Naquela época, seus discursos
eram de salvação e esperança para um povo desolado e não sobre a aniquilação de
milhares de pessoas.
Ou talvez ele já tivesse
tudo planejado. Talvez a alma corrompida do meu progenitor tivesse sido formada
antes mesmo do seu nascimento. Não sei... E acho que nunca saberei.
Phillip sorriu ao me ver
examinar a flor e colocou sua mão em cima da minha. Minha salvação começou ali.
Meu próximo encontro com
Phillip foi na frente da entrada da chancelaria, que ficava no subsolo de
Berlin, no dia trinta de abril do mesmo ano. Dessa vez ele estava fardado e sua
expressão era ainda mais dura.
- O que faz aqui?! -
Perguntas assim já estavam virando parte da nossa rotina.
Olhei à minha volta. Dessa
vez, eu estava cercada por soldados americanos e soviéticos. Medo em sua forma
mais pura desceu pela minha garganta e se alojou em meu estômago.
- O que aconteceu? –
Perguntei, encarando a entrada do Führerbunker. Talvez eu soubesse que não
estava preparada para o que ele diria. Talvez minha coragem tivesse saído dos
confins do meu desespero por dias melhores. E havia, ainda, a possibilidade de
que apenas o fato de Phillip estar do meu lado me dava forças.
- Os alemães disseram que
ele se matou. E a mulher foi junto. Conseguimos alguns restos mortais. -
Phillip me segurou pelos braços quando fiz menção de entrar no local. - Está
louca?! Não pode entrar aqui!
- Eu preciso vê-los!
- Por que?!
Quase gritei que o soldado
havia me dito que meu pai e minha mãe estavam mortos e que o mínimo que eu
merecia era vê-los, mas me contive. Eu seria só mais um corpo não reconhecido
para o restante do mundo odiar.
- Por favor. - O apelo foi
pouco mais que um sussurro. Uma única lágrima escorreu pelo meu rosto. Algum
tempo depois, Phillip disse que meus olhos azuis nunca estiveram tão desolados
e foi por isso que ele me levou para dentro, porque não suportaria não me
deixar entrar.
Não sei quanto tempo fiquei
lá. E não faço questão da saber. Poupo a mim mesma dos detalhes sórdidos de ver
meus pais completamente queimados e só seus restos mortais que os americanos e
sovietes resgataram. Como se um tiro na cabeça e um pouco de cianeto não
pudessem matá-los o suficiente.
- Ele viu que não sairia bem
dessa. Escolheu o caminho certo. Com menos dor. - Phillip disse. - Em algum
lugar por aqui, acharam a certidão de casamento.
- Certidão de casamento? -
Olhei-o sem saber o que pensar ou fazer. Eu só conseguia sentir meu corpo meio
morto, meio anestesiado.
- Eles se casaram pouco
antes da hora em que os soldados ouviram o disparo.
Ficamos em silêncio por
alguns momentos. Eu especulava sobre esse estranho amor que havia entre os
dois. O que seria isso? Passei minha vida inteira ouvindo minha mãe lamentar
por Adolf não pertencê-la por completo e, agora que pertence, estão mortos.
- Não podemos ter certeza se
são mesmo Adolf e Eva. - Murmurei.
Se Phillip me ouviu,
ignorou.
- Temos que ir. Os sovietes
querem destruir este lugar.
Saímos do bunker e mais
lágrimas inundaram meu rosto quando me lembrei do quanto minha mãe gostava das
flores da Alemanha. Os campos de Berlin estavam lotados delas. O sol que nunca
esquenta estava no ponto mais alto do céu e uma espécie de calor pairava entre
todos. A capital alemã estava, finalmente, livre.
E eu?
Smith me levou dali. Disse
que eu não poderia ficar na Alemanha sem ser morta em breve. Por mais anônima
que Eva me manteve na infância, eu nunca escaparia tão facilmente. Não sei por
quê, mas ele não me entregou ou me matou quando soube quem eu era. Apenas me
deu apoio quando eu mais precisei. No meio do caos pós-guerra, conseguimos
desembarcar nos Estados Unidos e arrumar uma nova identidade para mim. Agora eu
sou Abigail Smith, casada com Phillip Smith. Nome de solteira: Abigail Schmit.
Só nos casamos dois anos
depois. Dizem que situações desesperadoras unem duas pessoas e eu tinha medo de
que fosse só por isso mesmo. Mas não era. Nossas almas foram feitas uma para a
outra e é isso o que importa. Posso dizer que tenho um príncipe em armadura nem
tão cintilante apaixonado por literatura e que vivi um conto de fadas de
primavera distorcido.
Fizemos um novo começo. Numa
terra em que flores desabrocham trezentos e sessenta e cinco dias por ano e que
a primavera parece ser eterna. Chuvas torrenciais regam nosso recanto de amor e
o sol aquece minha alma assim como Phillip o faz com meu coração.
Hoje, enquanto vejo minha
filha correndo pelo gramado verde da nossa casa no campo, sei que aqui é o meu
lugar. Berlin foi minha cidade por um tempo e é verdade que passei tempo demais
em Munique, mas meu coração estava com meus pais. A capital alemã costumava ser
o centro dos meus pensamentos para o futuro, mas vejo que não é mais. Vou me
lembrar do dia em que conheci Phillip em toda primavera. Vou sorrir imaginando
uma flor dentro da minha xícara de chá e sempre saberei que, não importa onde
eu esteja, minha vida e felicidade sempre estarão junto dele.
E eu me lembrarei da minha
mãe e do modo como ela também teve um romance de primavera. De certo modo,
nosso destino foi parecido. Ela também se uniu para sempre ao homem que amava.
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