Primavera alemã

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Primavera alemã


Desde quando eu era bem pequena, Eva me mandou para viver em Munique. Mesmo naquela época, ela já sabia que eu correria perigo se ficasse perto demais da capital. Ou das pessoas que lá moravam. Conhecia a natureza de seu companheiro e nada impediria seus inimigos de me machucarem. Então, para me poupar, minha mãe me mandou para morar com uma família conhecida de seus pais. Isso não me impedia de saber que meu pai não queria assumi-la e que ele, provavelmente, nem se lembrava de que tinha uma filha. Talvez isso fosse bom, eu acho. Ninguém sabia se Adolf Hitler tinha limites.

Mas eu não conseguia simplesmente viver à margem de tudo. Não quando pessoas sofriam e uma guerra explodia por culpa de alguém tão “próximo” a mim. Juntei toda a audácia que acompanha a adolescência e fui até Berlin. Eu precisava entender as razões do meu pai. Só não esperava chegar tarde demais.

Era início de abril do ano de mil novecentos e quarenta e cinco. Alheia aos perigos que cercavam meu sobrenome com o fim da guerra, decidi que aquilo tudo tinha que parar. Eu já havia chegado à sede do governo alemão e esperava conseguir uma entrevista com meu pai o mais rápido possível. O que eu não esperava era que houvesse um homem no meio do meu caminho. Ainda me lembro de como os olhos verdes pareciam frios ao me ver pela primeira vez. Não sabia quem ele era, só sabia que não era alemão.

- O que faz aqui? - Ele perguntou assim que me aproximei.

- Vim ver o governante. - Ergui o queixo, convencida. A postura e o tom de voz firme indicavam sua profissão. O sotaque, sua nacionalidade. Quando foi que os soldados americanos chegaram? As coisas deveriam estar piores do que eu imaginara, então. Ou não. Não tinha mais ninguém por perto. Um soldado estrangeiro não deveria ficar sozinho por ali. Deveria?

- Adolf? - Ele riu quando hesitei. - Não vai me dizer que quer reclamar pela vida de conhecidos?

- O que quer dizer com isso, soldado? - Ele não pareceu se importar com a última palavra. Acredito que não estava disfarçado ou algo do tipo. Mesmo que usasse roupas comuns.

- Sinto muito, senhorita, mas não adianta. Muitos dos que interferiram morreram. A maior parte deles.

- Ele não vai me matar. - Ergui uma sobrancelha como se o desafiasse. Acima de tudo, eu era uma ariana. Seria um absurdo meu próprio pai me matar. Mesmo que ele mal me conhecesse.

- Por que não?

Porque Adolf Hitler era meu pai? Porque eu era a herdeira do Fuhrer? Por que minha mãe, uma espécie de concubina do ditador, me protegeria?

Dizer isso certamente não salvaria a minha vida.

- Isso não te interessa, americano.

O ódio em seus olhos surgiu como um raio quando fiz de sua nacionalidade um xingamento.

- Uma moça deveria saber que não se deve subestimar as pessoas. Muito menos os desconhecidos. - O soldado se aproximou de mim e só então percebi o quão maior que eu ele era.

Não consegui responder. Felizmente, ou infelizmente, vários oficiais alemães saíram do Palácio de Reichstag e ele me puxou pela mão.

- Aonde vai? O que está fazendo?!

- Te salvando.

Não sei o motivo, apenas fui para qualquer lugar onde aquele homem desconhecido pudesse me levar.

Droga. Eu não precisava me esconder. Era filha do fuhrer, não?

Mas algo em meu peito me disse para fingir ser uma cidadã qualquer. Mais tarde, descobri que o soldado Smith tinha o dever de matar qualquer pessoa ligada ao governo alemão. Mas foi só mais tarde que eu encontrei uma desculpa plausível. Naquele momento, apenas o segui sob o sol da tarde pela cidade morta em busca de abrigo.

- O que queria lá? - Phillip, esse era seu nome, perguntou. Estávamos sentados numa cafeteria mal cuidada – ou que havia sido destruída pelos nazistas - que ficava do outro lado da cidade. Ele olhava para os lados frequentemente e murmurava o tempo inteiro que algo estava errado. E eu concordava. Para uma época de guerra, tudo estava calmo demais. Talvez fosse aquela calmaria que sempre vem antes da mais cruel das tempestades. E era esse era o meu maior medo.

- O que todos querem nesse momento. - Eu podia ver meu reflexo em seus olhos que já haviam visto demais. - Um pouco de paz.

Olhei para baixo e examinei uma flor que havia caído dentro da minha xícara de chá. Rosa, delicada... Lembrou-me de quando eu era apenas uma criança e ainda vivia em Berlin. Adolf era apenas um amigo que minha mãe via de vez em quando e não o homem mais odiado do planeta ou o pai que não me conhecia. Naquela época, seus discursos eram de salvação e esperança para um povo desolado e não sobre a aniquilação de milhares de pessoas.

Ou talvez ele já tivesse tudo planejado. Talvez a alma corrompida do meu progenitor tivesse sido formada antes mesmo do seu nascimento. Não sei... E acho que nunca saberei.

Phillip sorriu ao me ver examinar a flor e colocou sua mão em cima da minha. Minha salvação começou ali.


Meu próximo encontro com Phillip foi na frente da entrada da chancelaria, que ficava no subsolo de Berlin, no dia trinta de abril do mesmo ano. Dessa vez ele estava fardado e sua expressão era ainda mais dura.

- O que faz aqui?! - Perguntas assim já estavam virando parte da nossa rotina.

Olhei à minha volta. Dessa vez, eu estava cercada por soldados americanos e soviéticos. Medo em sua forma mais pura desceu pela minha garganta e se alojou em meu estômago.

- O que aconteceu? – Perguntei, encarando a entrada do Führerbunker. Talvez eu soubesse que não estava preparada para o que ele diria. Talvez minha coragem tivesse saído dos confins do meu desespero por dias melhores. E havia, ainda, a possibilidade de que apenas o fato de Phillip estar do meu lado me dava forças.

- Os alemães disseram que ele se matou. E a mulher foi junto. Conseguimos alguns restos mortais. - Phillip me segurou pelos braços quando fiz menção de entrar no local. - Está louca?! Não pode entrar aqui!

- Eu preciso vê-los!

- Por que?!

Quase gritei que o soldado havia me dito que meu pai e minha mãe estavam mortos e que o mínimo que eu merecia era vê-los, mas me contive. Eu seria só mais um corpo não reconhecido para o restante do mundo odiar.

- Por favor. - O apelo foi pouco mais que um sussurro. Uma única lágrima escorreu pelo meu rosto. Algum tempo depois, Phillip disse que meus olhos azuis nunca estiveram tão desolados e foi por isso que ele me levou para dentro, porque não suportaria não me deixar entrar.

Não sei quanto tempo fiquei lá. E não faço questão da saber. Poupo a mim mesma dos detalhes sórdidos de ver meus pais completamente queimados e só seus restos mortais que os americanos e sovietes resgataram. Como se um tiro na cabeça e um pouco de cianeto não pudessem matá-los o suficiente.

- Ele viu que não sairia bem dessa. Escolheu o caminho certo. Com menos dor. - Phillip disse. - Em algum lugar por aqui, acharam a certidão de casamento.

- Certidão de casamento? - Olhei-o sem saber o que pensar ou fazer. Eu só conseguia sentir meu corpo meio morto, meio anestesiado.

- Eles se casaram pouco antes da hora em que os soldados ouviram o disparo.

Ficamos em silêncio por alguns momentos. Eu especulava sobre esse estranho amor que havia entre os dois. O que seria isso? Passei minha vida inteira ouvindo minha mãe lamentar por Adolf não pertencê-la por completo e, agora que pertence, estão mortos.

- Não podemos ter certeza se são mesmo Adolf e Eva. - Murmurei.

Se Phillip me ouviu, ignorou.

- Temos que ir. Os sovietes querem destruir este lugar.

Saímos do bunker e mais lágrimas inundaram meu rosto quando me lembrei do quanto minha mãe gostava das flores da Alemanha. Os campos de Berlin estavam lotados delas. O sol que nunca esquenta estava no ponto mais alto do céu e uma espécie de calor pairava entre todos. A capital alemã estava, finalmente, livre.

E eu?


Smith me levou dali. Disse que eu não poderia ficar na Alemanha sem ser morta em breve. Por mais anônima que Eva me manteve na infância, eu nunca escaparia tão facilmente. Não sei por quê, mas ele não me entregou ou me matou quando soube quem eu era. Apenas me deu apoio quando eu mais precisei. No meio do caos pós-guerra, conseguimos desembarcar nos Estados Unidos e arrumar uma nova identidade para mim. Agora eu sou Abigail Smith, casada com Phillip Smith. Nome de solteira: Abigail Schmit.

Só nos casamos dois anos depois. Dizem que situações desesperadoras unem duas pessoas e eu tinha medo de que fosse só por isso mesmo. Mas não era. Nossas almas foram feitas uma para a outra e é isso o que importa. Posso dizer que tenho um príncipe em armadura nem tão cintilante apaixonado por literatura e que vivi um conto de fadas de primavera distorcido.

Fizemos um novo começo. Numa terra em que flores desabrocham trezentos e sessenta e cinco dias por ano e que a primavera parece ser eterna. Chuvas torrenciais regam nosso recanto de amor e o sol aquece minha alma assim como Phillip o faz com meu coração.

Hoje, enquanto vejo minha filha correndo pelo gramado verde da nossa casa no campo, sei que aqui é o meu lugar. Berlin foi minha cidade por um tempo e é verdade que passei tempo demais em Munique, mas meu coração estava com meus pais. A capital alemã costumava ser o centro dos meus pensamentos para o futuro, mas vejo que não é mais. Vou me lembrar do dia em que conheci Phillip em toda primavera. Vou sorrir imaginando uma flor dentro da minha xícara de chá e sempre saberei que, não importa onde eu esteja, minha vida e felicidade sempre estarão junto dele.

E eu me lembrarei da minha mãe e do modo como ela também teve um romance de primavera. De certo modo, nosso destino foi parecido. Ela também se uniu para sempre ao homem que amava.


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