O cara certo

quarta-feira, 22 de julho de 2015

O cara certo


Aconteceu de novo. As lágrimas mornas molhando meus ombros e pescoço, as mãos pequenas fincadas nas costas da minha camisa e os soluços que partiam meu tolo e apaixonado coração. Partiam? Não mesmo. Meu coração já estava despedaçado demais por suas lágrimas para que eu sentisse qualquer coisa naquele momento ou em qualquer outro. Meu corpo já estava anestesiado. Eu havia me acostumado a ser o cara certo no cargo errado. Melhor amigo apaixonado. Clichê. E, como todo e qualquer bom clichê: é algo que não deixa de ser verdade.

Sim. Annie. De novo. Era sempre ela, não? Desde os meus dez anos de idade, Annie vinha com seus problemas, com suas dúvidas, com seus amores e desprazeres, fazer do meu ombro seu lenço. E eu, belo imbecil que sou, afago seus cabelos e enxugo suas lágrimas. Sendo coadjuvante no meu filme preferido. Como sempre.

Entretanto, dessa vez, era pior. Não era mais um badboy que ela conheceu na balada ou um jogador de futebol da escola. Era seu marido. Seus soluços eram tão silenciosos e doídos que eu tinha medo de tocá-la. E se ela se despedaçasse? Não era um trinco, um arranhão. Não era mais o diamante que fora lapidado até chegar à forma definitiva. Era minha Annie. O frágil cristal que, agora, chorava em meus braços.

A vontade de acabar com a vida do homem que a machucou era muito mais intensa que das outras vezes. Não. Matar não. Eu queria que ele tivesse uma morte lenta, tão dolorosa que faria seu coração de gelo derreter até não sobrar mais nada. Nem o pó das cinzas do inútil corpo. Eu queria fazê-lo sangrar até seu corpo secar e cuspir em cima do que restasse. Oh, deus! Como eu queria fazê-lo sentir o que minha loirinha do sorriso brilhante, nesse momento, sentia.

Mas eu não tenho conserto. Um pedaço de pau torto que nunca se endireitará. Não vou atrás do cafageste que prometeu cuidar da minha vida. Não farei com que o ser que destruiu meu bem mais precioso sangre até morrer. Porque ela o quis assim. Annie... De novo. Um anjo rodeado por demônios. O que um ser divino faz no meio do inferno, eu nunca soube, mas ela não queria pagar com a mesma moeda ou fazê-lo sofrer. Só queria o divórcio. Pelo menos isso.

Perguntei o que faria e seus olhos azuis chorosos me disseram para não fazer nada. Ele pagaria por tê-la traído, mas seria nos termos dela e não nos meus. Mais uma vez, engoli meu ódio, matei meu orgulho e deixei o amor falar mais alto. Não tocaríamos mais no assunto da traição e nem como havia sido ruim para ela encontrar o marido na cama com outra. Os pedaços do doce coração seriam novamente unidos e eu faria de tudo para que isso acontecesse logo.

Seu rosto se levantou do meu ombro e eu, por impulso, uni nossos lábios numa coisa só. Minha mão em seu queixo, a outra desceu das costas para a cintura. Não foi bem um beijo. Não no início. A surpresa havia deixado seu corpo congelado no mesmo lugar e com os lábios cerrados. Eu já estava quase desistindo quando as mãos delicadas vieram até o meu rosto e seus lábios se entreabriram. Deus! Era melhor do que eu havia imaginado em meus milhares de sonhos. Descrição perfeita? Nem que eu fosse o mestre Shakespeare. Nem em mil anos de vida escrevendo. Nem que Afrodite baixasse em mim.

Annie não disse nada. Apenas me olhou com um sorriso triste nos olhos. Por um momento, pensei que ela fosse usar o velho clichê de estragar amizades com romance, mas ela juntou nossos lábios novamente e eu comecei a voar. Aquela era Annie. A mulher que me mostrava o paraíso e me levava ao lago cocite, nono círculo do inferno, num só instante. Era por ela que eu mataria e só por ela eu enfrentaria o submundo inteiro. Patético. Mas sou um vagabundo qualquer que não toma jeito.

Ela se foi. Não com as lágrimas de antes. Agora havia um sorriso no rosto que me fazia promessas nas quais eu não queria acreditar. Mas Annie havia deixado meu corpo formigando e um sentimento angelical cravado no fundo do meu coração. Havia esperança, afinal. Para mim. Para nós. E eu, pau torto que morrerá da mesma forma, não consigo simplesmente ignorar. Não sei o que acontecerá. Não sei como será nosso próximo encontro, mas, dessa vez, eu faria questão de mostrar que era o cara certo e não apenas o amigo.

Ela se foi. Mas, como sempre, voltará.

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Primeiro:http://notasmentaisparaumdiaqualquer.blogspot.com.br/2015/04/contos-o-amigo.html

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