Pela última vez

quarta-feira, 4 de março de 2015

Pela última vez


Clarice abriu os olhos e viu toda a sua vida passar, como num filme de baixo orçamento e muito mau gosto. A tela da sua mente era velha e gasta, meio cinzenta e meio sépia. Talvez pelo seu vício em filmes antigos, talvez pelo pavor que nublava seus olhos claros e vidrados.

Enquanto sua respiração ofegante embaçava o vidro do espelho quebrado, o homem encarava o medo em seus olhar como se estivesse em êxtase. E, se formos parar para analisar a personalidade e o histórico do assassino, ele realmente estava. A raiva que habitava seu olhar era infinitas vezes pior do que a obsessão que ela sempre via quando ele entrava de madrugada em seu quarto.

Os olhos azuis apavorados encararam o vazio enquanto a faca cega feria a frágil pele do seu rosto. É verdade que já quis morrer, mas não daquele jeito, não pelas mãos de outra pessoa além de si mesma.

Aquele homem havia surgido há dois anos, para ser seu pior pesadelo. Sua mãe o amava desde a primeira vez que haviam se visto e ele a tocava com suas mãos imundas desde dois meses depois disso. Era errado, ambos sabiam. Mas a menina não era capaz de dizer nada por se sentir culpada e amedrontada. Ele poderia matá-la se ela se atrevesse a abrir o bico. Ou pior, poderia matar alguém que ela amava.

Foi por isso que decidiu fugir. Por não conseguir mais aguentar viver com aquele monstro que era obrigada a chamar de pai. Não suportava mais o sofrimento que era ficar em sua própria casa e sumir dali era a decisão mais sensata a se tomar.

Pegou um ônibus velho, deixou um bilhete para a mãe e seu urso de pelúcia favorito para o irmão mais novo. Com toda a coragem que restou em seu corpo, se embrenhou pelos caminhos escuros da madrugada até a rodoviária e, o que viesse depois disso, ela resolveria mais tarde.

Dois dias se passaram e Clarice estava sentada numa pequena lanchonete de beira de estrada. O lugar era feito de madeira escura e velha e as lâmpadas mal funcionavam, deixando o luar envolvê-la numa penumbra macabra. Tentaria pegar uma carona até a cidade mais próxima e, de lá, um ônibus para a capital. Só então se sentiria livre de verdade.

Mas suas esperanças foram destruídas quando a figura do padrasto surgiu na entrada da lanchonete. Parecia que as influências do seu carrasco iam mais longe do que ela imaginava. De alguma forma, ele conseguiu encontrá-la e a raiva que via em seus olhos conseguia ser mais forte que a obsessão que lhe acompanhava até seu quarto de madrugada.

Ele pegou-a pelo pulso e levou-a até o banheiro. Não disse nada, nenhuma palavra saiu dos lábios secos. Ele apenas pegou a adaga que estava em seu bolso, cortou a frágil pele do seu pescoço, abaixou suas calças e a fez dele, ferida, destruída, uma última vez.

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