Pela última vez
Clarice abriu os olhos e viu toda a sua vida
passar, como num filme de baixo orçamento e muito mau gosto. A tela da sua
mente era velha e gasta, meio cinzenta e meio sépia. Talvez pelo seu vício em
filmes antigos, talvez pelo pavor que nublava seus olhos claros e vidrados.
Enquanto sua respiração ofegante embaçava o
vidro do espelho quebrado, o homem encarava o medo em seus olhar como se
estivesse em êxtase. E, se formos parar para analisar a personalidade e o
histórico do assassino, ele realmente estava. A raiva que habitava seu olhar era
infinitas vezes pior do que a obsessão que ela sempre via quando ele entrava de
madrugada em seu quarto.
Os olhos azuis apavorados encararam o vazio
enquanto a faca cega feria a frágil pele do seu rosto. É verdade que já quis
morrer, mas não daquele jeito, não pelas mãos de outra pessoa além de si mesma.
Aquele homem havia surgido há dois anos, para
ser seu pior pesadelo. Sua mãe o amava desde a primeira vez que haviam se visto
e ele a tocava com suas mãos imundas desde dois meses depois disso. Era errado,
ambos sabiam. Mas a menina não era capaz de dizer nada por se sentir culpada e
amedrontada. Ele poderia matá-la se ela se atrevesse a abrir o bico. Ou pior,
poderia matar alguém que ela amava.
Foi por isso que decidiu fugir. Por não
conseguir mais aguentar viver com aquele monstro que era obrigada a chamar de
pai. Não suportava mais o sofrimento que era ficar em sua própria casa e sumir
dali era a decisão mais sensata a se tomar.
Pegou um ônibus velho, deixou um bilhete para
a mãe e seu urso de pelúcia favorito para o irmão mais novo. Com toda a coragem
que restou em seu corpo, se embrenhou pelos caminhos escuros da madrugada até a
rodoviária e, o que viesse depois disso, ela resolveria mais tarde.
Dois dias se passaram e Clarice estava
sentada numa pequena lanchonete de beira de estrada. O lugar era feito de
madeira escura e velha e as lâmpadas mal funcionavam, deixando o luar envolvê-la
numa penumbra macabra. Tentaria pegar uma carona até a cidade mais próxima e,
de lá, um ônibus para a capital. Só então se sentiria livre de verdade.
Mas suas esperanças foram destruídas quando a
figura do padrasto surgiu na entrada da lanchonete. Parecia que as influências
do seu carrasco iam mais longe do que ela imaginava. De alguma forma, ele
conseguiu encontrá-la e a raiva que via em seus olhos conseguia ser mais forte
que a obsessão que lhe acompanhava até seu quarto de madrugada.
Ele pegou-a pelo pulso e levou-a até o banheiro.
Não disse nada, nenhuma palavra saiu dos lábios secos. Ele apenas pegou a adaga
que estava em seu bolso, cortou a frágil pele do seu pescoço, abaixou suas
calças e a fez dele, ferida, destruída, uma última vez.
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