Apenas mais uma

quinta-feira, 26 de março de 2015

Apenas mais uma


Quão baixo alguém pode chegar? Seria algum tipo de castigo por tudo de mal que já fizera aos outros ou apenas a vida lhe oferecendo mais um infortúnio? Luis Fernando Emediato disse que “podemos ser, às vezes, cruéis, impiedosos e injustos. Nunca imaginamos que um dia o veneno pode voltar-se contra nós." A senhorita Slenski finalmente entendeu o significado da frase. De líder de torcida popular pela maldade, à renegada e desprezada pela escola. Foi assim que a abelha rainha, Brittany, viu seu grande e belo mundo desmoronar quando conheceu o que a vida tem de pior.

Mas estamos nos apressando. Vamos começar pelo início.

Brittany Slenskin tinha 17 anos quando se perdeu. Ou quando roubaram sua própria vida de suas mãos bem cuidadas. Líder de torcida cobiçada por metade da escola, a jovem loira de olhos azuis viu seu pequeno reino escolar ruir quando contraiu AIDS.

É verdade que o vírus que destrói o sistema imunológico é cruel ao levar, aos poucos, toda a vitalidade que emana do rosto do portador, mas os seres humanos conseguem ser piores ainda...

Mesmo que poucas pessoas desconfiassem do ocorrido, notícias ruins movem o mundo. Ainda mais quando se está no colegial. Como centro de todas as atenções, sua sentença foi pior do que o que era comum.

Tudo começou com indiretas e conspirações, eventuais murmúrios a respeito da doença ainda não confirmada. Brit se viu alvo de olhares enojados e não foi sem nenhum tipo de surpresa que percebeu o afastamento dos amigos. Não todos, é verdade, mas nada nunca seria da mesma forma.

Quando, de algum modo desconhecido, os colegas souberam que a doença havia mesmo atacado Brittany, seus amigos - que haviam se transformado em desconhecidos - passaram a ser inimigos. E os inimigos nunca deixariam por menos: se tornaram ainda mais cruéis. Julgamentos de vagabunda, piranha suja e puta foi só o início do tormento. Logo, seu sofrimento deixou de ser apenas psicológico e passou a ser, também, físico.

Quem disse que era melhor ver um amigo se tornar inimigo do que desconhecido não fazia a mínima ideia do que falava. Entrar na sala de aula e ouvir uma “ex-amiga” dizer para tomar água numa garrafinha para não contaminar o bebedouro fez com que algo dentro de si quebrasse. E a cada nova "piada" ela perdia mais um pedaço de si mesma.

“Aguente firme” eles diziam. “Você é maior do que isso, Brit”... Mas ninguém sabia como era sufocante aquela dor. Nenhum deles entendia o que era saber que seu corpo poderia definhar e sua vida se esvair a qualquer momento enquanto se via cada vez mais sozinha. Por mais que tentassem ser cordiais e educados, ninguém – amigo ou não – entendia o que ela sentia.

Nas horas vagas, que eram cada vez mais freqüentes, Brittany pensava no futuro que um dia acreditou que viveria. O fim do ensino médio, a faculdade de moda, seu namoro com Derek viraria noivado e então o casamento... Os filhos que teriam... Quando esses pensamentos lhe ocorriam, ela soltava uma gargalhada amarga. Como se casaria com Derek se ela lhe provoca asco? Ao contar sobre a doença ao namorado, Brittany esperava um abraço. Não precisava de palavras de conforto, mas queria apoio e não um careta de nojo e a acusação de que ela o havia traído.

- Essa história toda de virgindade! – Ele disse. – E eu acreditei! Que nojo de você, Brittany! – Ele saiu da sala antes que ela pudesse sequer explicar que não havia contraído a doença através do sexo.

As provas da verdadeira natureza humana vieram com o tempo. Cada dia mais uma dose agonizante e dolorosa... Cada vez pior... Até chegar o momento em que Brittany não mais suportava e só esperava pela morte de seu corpo. A da alma já viera mais rápido que a doença.

Agressões não só emocionais e psicológicas, mas também físicas. Por um breve momento ela acreditou que esses diversos danos finalmente acabariam com a dor de se ver num corpo sem alma, mas se enganou. Ao invés de virem com a morte, eles só a atrasaram e prolongaram seu sofrimento. Seria justo algo assim? Mesmo que se arrependesse de todos os seus pecados, poderia Deus lhe castigar com tamanho sofrimento? Era certo?

Bastava Brittany entrar no refeitório para que as pessoas se distanciassem e outras saíssem do lugar. Na sala de aula, sua carteira ficava isolada das demais. Mesmo que os professores tentassem contornar a situação e ensinar sobre a doença aos outros alunos, de nada adiantava. Chegou o momento em que Brit desistiu e escolheu ficar mais afastada. 
Mesmo que algumas poucas almas boas tentassem se aproximar, seu coração já estava tão ferido que não permitia. Tinha medo de se quebrar mais um pouco, medo dos danos que poderiam lhe causar. Mesmo acreditando que nada mais poderia piorar, Brittany, de forma nenhuma, queria pagar para ver.

Quanto mais seu corpo ia definhando, mais Brittany sofria. Não por dores ou por danos da doença, mas por solidão. Cada vez menos pessoas iam vê-la e até mesmo a família se sentia deslocada. Seus pais diziam que era por falta de tempo, mas ela sabia que era estranho demais vê-la num estado tão decadente. A visão de pessoas tão fracas e debilitadas mexe com o espírito. Nem mesmo ela suportava se olhar no espelho e se lembrar de quem um dia foi. As olheiras fundas, o rosto magro com grandes sulcos, os cabelos loiros perderam o brilho e os olhos nunca mais expressaram algum tipo de emoção. Nem mesmo chorava. Lágrimas seriam inúteis e ela já não se importava em sentir autopiedade.

Foi numa tarde chuvosa de uma terça-feira, tendo como culpada uma simples gripe que pegou na praia, que seu último suspiro foi ouvido. Nenhuma alameda ou organização não governamental recebeu seu nome. Nada que lhe homenageasse e a fizesse repousar para sempre na memória das pessoas. Nada muito especial e significativo. Brittany apenas se foi. Uma das muitas pessoas que passam por esse mundo e que ficam na mente de poucos por pouco tempo. Mais uma que faz parte da grande maioria que leva sua dor consigo sem comover ninguém além de si mesma. Uma vítima do acaso - ou seria destino? – que recebeu todas as condolências e amores dos hipócritas que foram ver seu jovem corpo no caixão.

0 comentários :

Postar um comentário