Possuída
-
Pater Noster quio est in ceali –
A voz fraca ecoou por todo o quarto escuro, causando estremecimento em todos os
lugares possíveis. As cortinas estavam fechadas, todos os espelhos haviam sido
cobertos e o resto da casa estava em completo silêncio para que nada saísse da
forma errada.
Os
olhos, completamente brancos, se fecharam enquanto o rosto redondo se retorcia
numa careta medonha. Então era verdade. O corpo de Matthew estava mesmo
possuído por um demônio.
Depois
de falar em línguas estranhas, jogar uma cadeira de madeira contra a parede e
expor segredos obscuros do padre, aversão ao sagrado era o último sinal de que
o garoto estava mesmo com um filho do diabo habitando seu pequeno corpo.
Não
que existisse alguém no pequeno povoado que duvidasse do fato. Stuart, o padre,
havia feito as constatações mais por padrão do que por ausência de certeza. De
qualquer forma, era melhor começar a expulsar o ser inferior que tomava a alma
da criança para si antes que fosse tarde demais para qualquer um.
Pegou
o copo de água benta com uma mão e o livro sagrado com a outra, olhou fixamente
os olhos arregalados por um instante antes de começar a ler um salmo qualquer
em latim. O demônio impulsionou o corpo de seis anos em cima do padre antes que
qualquer outra pessoa pudesse evitar o choque.
-
Beatus vir, qui non abiit in consilio
impiorum et in via peccatorum non stetit et in conventu derisorum non sedit… -
Os gemidos esganiçados fizeram com que o peso do garoto sumisse de cima de seu
corpo em menos de um segundo. Matthew, agora, estava encostado na parede oposta
como se quisesse atravessá-la para não ter que ouvir as palavras sagradas. Os
olhos haviam perdido a cor branca para abrigar um tom vermelho sangue que só
deixava a careta que distorcia o rosto pálido ainda mais medonha.
-
Acha mesmo que pode me expulsar quando até mesmo você duvidou da existência de
Deus?! - O demônio perguntou. A voz distorcida fez os pelos de todos se
arrepiarem.
Stuart,
aparentemente inabalado e experiente, continuou sua ladainha em latim por mais
um bom tempo enquanto o ser do submundo recitava os vários pecados que o servo
de Deus havia cometido.
Além
do demônio, da criança – juntos na mesma carne – e do padre, estavam no pequeno
quarto do casebre de madeira a mãe, o pai e os dois irmãos mais velhos de
Matthew. A presença da família, segundo o padre, era muito importante para que
o demônio fosse obrigado a se retirar do corpo do menino. Então, mesmo com o
medo que tomava conta de seus estômagos, a família de Matthew havia concordado
em assistir ao ritual inteiro. Pelo filho mais novo, todos disseram.
As
mãos do padre se ocuparam borrifando água benta por todo o quarto de Matthew,
que se contorcia e gritava imprecações. Aos poucos, seus gritos foram ficando
mais fracos e os movimentos desesperados se tornaram lentos até que finalmente
cessaram. A única coisa que se movia no quarto era o pequeno tronco da criança,
respirando lentamente. Em silêncio, toda a família encarava a criança estendida
no chão, com os braços abertos. A cor de seus olhos aos poucos voltava ao
normal e todos voltaram a respirar normalmente.
Exceto
a mãe. Ela ainda estava parada, perto da porta, tentando mexer os próprios pés,
mas sem conseguir sair do lugar. Lágrimas escorriam de seus olhos enquanto a
mulher contemplava cada uma das pessoas presentes.
-
Mamãe? - A irmã mais velha de Matthew chamou-a e todos os outros encararam as
costas encurvadas da mulher.
-
Você deixou o Nathan te tocar.
Os
olhos azuis da menina ficaram arregalados. Como a mãe sabia daquilo? E por que
escolhera justo esse momento para confrontá-la?
-
O que? - O pai perguntou, sem entender o que estava acontecendo.
-
Essa rameira! – A mãe gritou mais alto. – Deixou que o filho dos Allison
tocasse em seus seios!
-
Lennie! – O pai berrou, sem acreditar no que ouvia. Àquela altura, nenhum dos
quatro familiares se lembrava de Matthew, estendido no chão. – Como pôde deixar
um homem te tocar?!
-
Eu... Eu... – Os olhos azuis de Lennie estavam apavorados pela perspectiva do
que poderia lhe acontecer agora que os pais sabiam do seu pior pecado. Não
entendia como a mãe havia descoberto, mas aquilo não importava mais.
Ou
importava. A garota só não percebeu isso até ser tarde demais.
Na
verdade, ninguém havia entendido nada antes da mãe do garoto matar os dois
filhos mais velhos e o próprio marido.
Ela
se aproximou da filha numa velocidade inumana e puxou seu cabelo com tanta
força que quebrou o pescoço da menina. O próximo foi o filho do meio, que teve
sua cabeça arrancada do corpo com uma facilidade assombrosa. O marido, por sua
vez, teve seu coração esmagado contra o tórax.
Stuart
e Matthew só foram poupados por causa da água benta que estava em seus corpos.
O demônio bem que tentou matá-los, mas a pele do corpo em que ele estava
instalado começou a queimar e a mulher teve que fugir para não ser capturada
pelos outros moradores do vilarejo.
--
Cinco anos depois
Stuart
se olhou no espelho e viu um homem velho, magro e vestido pelo gosto de culpa
que habitava sua boca desde o dia da sua ruína como padre, há cinco anos.
Matthew, agora com onze anos, vivia no orfanato de uma cidade próxima e nunca
conseguiu se lembrar de nada do que acontecera na noite em que toda a sua
família havia sido morta.
Mas
ele se lembrava. Stuart se lembrava de cada detalhe e dos olhares horrorizados
que lhe fitaram logo antes de ficarem opacos e preenchidos pela gélida cor da
morte. Aqueles olhares passaram a ser seus pesadelos particulares. Todas as
noites vinham para lembrá-lo do terrível erro que cometera ao deixar de banhar
os outros membros da família com água benta.
Entrou
na banheira e ficou pensando em Matthew e em como fora injusto ele ficar sem
uma família por culpa de um erro idiota. Pensou também na mãe, que havia sumido
no mundo e só Deus sabia se o demônio a havia poupado ou não. E pensou em si
mesmo e em como seria fácil simplesmente parar de passar água benta pelo corpo
flácido todos os dias. Mas ele era covarde e se lembrava perfeitamente da
careta no rosto jovem da mãe das crianças dizendo que voltaria procurando por
vingança.
Ao
acabar o banho, o velho padre fracassado se secou, enrolou a toalha na cintura
e foi até o quarto para pegar a garrafa de água benta que usava como proteção
contra os maus espíritos. Foi quando sentiu um vento frio roçar suas costas
nuas e viu a garrafa quebrada e o líquido transparente sendo absorvido pelo
tapete de pele de alce que ganhara em seus tempos de glória.
-
Pensei que você não fosse mais voltar. – O padre falou para a figura que estava
de pé, perto da janela aberta.
-
O erro dos humanos é esquecer. – A voz estava rouca, distorcida por qualquer
coisa, estava bem diferente do que ele se lembrava. Os pés sujos, a roupa
rasgada... Apenas uma coisa era a mesma: o olhar. – E, também, acreditar.
Tomando
o cuidado de evitar o tapete molhado com água benta, a figura se aproximou do
padre e parou a centímetros de distância de tocar o rosto dele com o seu.
-
Seu destino é retornar ao inferno, filho do satanás. E arder eternamente nas
chamas insuportáveis.
-
E o seu destino, sou eu quem decido, padre Stuart.
Ela
ergueu uma mão e apertou o ar. Os olhos de Stuart se esbugalharam enquanto ele
sentia sua traqueia ser pressionada e o ar ser impedido de chegar aos pulmões.
Não havia mais o que fazer. Seria melhor se acostumar de uma vez com a sensação
de estar morto.
0 comentários :
Postar um comentário