Possuída

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Possuída



- Pater Noster quio est in ceali – A voz fraca ecoou por todo o quarto escuro, causando estremecimento em todos os lugares possíveis. As cortinas estavam fechadas, todos os espelhos haviam sido cobertos e o resto da casa estava em completo silêncio para que nada saísse da forma errada.

Os olhos, completamente brancos, se fecharam enquanto o rosto redondo se retorcia numa careta medonha. Então era verdade. O corpo de Matthew estava mesmo possuído por um demônio.

Depois de falar em línguas estranhas, jogar uma cadeira de madeira contra a parede e expor segredos obscuros do padre, aversão ao sagrado era o último sinal de que o garoto estava mesmo com um filho do diabo habitando seu pequeno corpo.

Não que existisse alguém no pequeno povoado que duvidasse do fato. Stuart, o padre, havia feito as constatações mais por padrão do que por ausência de certeza. De qualquer forma, era melhor começar a expulsar o ser inferior que tomava a alma da criança para si antes que fosse tarde demais para qualquer um.

Pegou o copo de água benta com uma mão e o livro sagrado com a outra, olhou fixamente os olhos arregalados por um instante antes de começar a ler um salmo qualquer em latim. O demônio impulsionou o corpo de seis anos em cima do padre antes que qualquer outra pessoa pudesse evitar o choque.

- Beatus vir, qui non abiit in consilio impiorum et in via peccatorum non stetit et in conventu derisorum non sedit… - Os gemidos esganiçados fizeram com que o peso do garoto sumisse de cima de seu corpo em menos de um segundo. Matthew, agora, estava encostado na parede oposta como se quisesse atravessá-la para não ter que ouvir as palavras sagradas. Os olhos haviam perdido a cor branca para abrigar um tom vermelho sangue que só deixava a careta que distorcia o rosto pálido ainda mais medonha.

- Acha mesmo que pode me expulsar quando até mesmo você duvidou da existência de Deus?! - O demônio perguntou. A voz distorcida fez os pelos de todos se arrepiarem.

Stuart, aparentemente inabalado e experiente, continuou sua ladainha em latim por mais um bom tempo enquanto o ser do submundo recitava os vários pecados que o servo de Deus havia cometido.

Além do demônio, da criança – juntos na mesma carne – e do padre, estavam no pequeno quarto do casebre de madeira a mãe, o pai e os dois irmãos mais velhos de Matthew. A presença da família, segundo o padre, era muito importante para que o demônio fosse obrigado a se retirar do corpo do menino. Então, mesmo com o medo que tomava conta de seus estômagos, a família de Matthew havia concordado em assistir ao ritual inteiro. Pelo filho mais novo, todos disseram.

As mãos do padre se ocuparam borrifando água benta por todo o quarto de Matthew, que se contorcia e gritava imprecações. Aos poucos, seus gritos foram ficando mais fracos e os movimentos desesperados se tornaram lentos até que finalmente cessaram. A única coisa que se movia no quarto era o pequeno tronco da criança, respirando lentamente. Em silêncio, toda a família encarava a criança estendida no chão, com os braços abertos. A cor de seus olhos aos poucos voltava ao normal e todos voltaram a respirar normalmente.

Exceto a mãe. Ela ainda estava parada, perto da porta, tentando mexer os próprios pés, mas sem conseguir sair do lugar. Lágrimas escorriam de seus olhos enquanto a mulher contemplava cada uma das pessoas presentes.

- Mamãe? - A irmã mais velha de Matthew chamou-a e todos os outros encararam as costas encurvadas da mulher.

- Você deixou o Nathan te tocar.

Os olhos azuis da menina ficaram arregalados. Como a mãe sabia daquilo? E por que escolhera justo esse momento para confrontá-la?

- O que? - O pai perguntou, sem entender o que estava acontecendo.

- Essa rameira! – A mãe gritou mais alto. – Deixou que o filho dos Allison tocasse em seus seios!

- Lennie! – O pai berrou, sem acreditar no que ouvia. Àquela altura, nenhum dos quatro familiares se lembrava de Matthew, estendido no chão. – Como pôde deixar um homem te tocar?!

- Eu... Eu... – Os olhos azuis de Lennie estavam apavorados pela perspectiva do que poderia lhe acontecer agora que os pais sabiam do seu pior pecado. Não entendia como a mãe havia descoberto, mas aquilo não importava mais.

Ou importava. A garota só não percebeu isso até ser tarde demais.

Na verdade, ninguém havia entendido nada antes da mãe do garoto matar os dois filhos mais velhos e o próprio marido.

Ela se aproximou da filha numa velocidade inumana e puxou seu cabelo com tanta força que quebrou o pescoço da menina. O próximo foi o filho do meio, que teve sua cabeça arrancada do corpo com uma facilidade assombrosa. O marido, por sua vez, teve seu coração esmagado contra o tórax.

Stuart e Matthew só foram poupados por causa da água benta que estava em seus corpos. O demônio bem que tentou matá-los, mas a pele do corpo em que ele estava instalado começou a queimar e a mulher teve que fugir para não ser capturada pelos outros moradores do vilarejo.

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Cinco anos depois

Stuart se olhou no espelho e viu um homem velho, magro e vestido pelo gosto de culpa que habitava sua boca desde o dia da sua ruína como padre, há cinco anos. Matthew, agora com onze anos, vivia no orfanato de uma cidade próxima e nunca conseguiu se lembrar de nada do que acontecera na noite em que toda a sua família havia sido morta.

Mas ele se lembrava. Stuart se lembrava de cada detalhe e dos olhares horrorizados que lhe fitaram logo antes de ficarem opacos e preenchidos pela gélida cor da morte. Aqueles olhares passaram a ser seus pesadelos particulares. Todas as noites vinham para lembrá-lo do terrível erro que cometera ao deixar de banhar os outros membros da família com água benta.

Entrou na banheira e ficou pensando em Matthew e em como fora injusto ele ficar sem uma família por culpa de um erro idiota. Pensou também na mãe, que havia sumido no mundo e só Deus sabia se o demônio a havia poupado ou não. E pensou em si mesmo e em como seria fácil simplesmente parar de passar água benta pelo corpo flácido todos os dias. Mas ele era covarde e se lembrava perfeitamente da careta no rosto jovem da mãe das crianças dizendo que voltaria procurando por vingança.

Ao acabar o banho, o velho padre fracassado se secou, enrolou a toalha na cintura e foi até o quarto para pegar a garrafa de água benta que usava como proteção contra os maus espíritos. Foi quando sentiu um vento frio roçar suas costas nuas e viu a garrafa quebrada e o líquido transparente sendo absorvido pelo tapete de pele de alce que ganhara em seus tempos de glória.

- Pensei que você não fosse mais voltar. – O padre falou para a figura que estava de pé, perto da janela aberta.

- O erro dos humanos é esquecer. – A voz estava rouca, distorcida por qualquer coisa, estava bem diferente do que ele se lembrava. Os pés sujos, a roupa rasgada... Apenas uma coisa era a mesma: o olhar. – E, também, acreditar.

Tomando o cuidado de evitar o tapete molhado com água benta, a figura se aproximou do padre e parou a centímetros de distância de tocar o rosto dele com o seu.

- Seu destino é retornar ao inferno, filho do satanás. E arder eternamente nas chamas insuportáveis.

- E o seu destino, sou eu quem decido, padre Stuart.


Ela ergueu uma mão e apertou o ar. Os olhos de Stuart se esbugalharam enquanto ele sentia sua traqueia ser pressionada e o ar ser impedido de chegar aos pulmões. Não havia mais o que fazer. Seria melhor se acostumar de uma vez com a sensação de estar morto.

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