Conto - Últimas palavras
Independentemente de terem
sobrevivido ou não, são heróis. Heróis por livre e espontânea pressão. Mas
ninguém lembra seus nomes ou conhece suas diferentes personalidades. Ninguém
quer mesmo saber disso. O que importa é que eles foram até o campo de batalha e
venceram. Lutaram para que alguma coisa grandiosa destruísse o mundo em nome da
paz. Nada mais.
Numa parede qualquer, há um
quadro com o seu nome gravado. Alguma medalha empoeirada que algum dos parentes
guardou numa gaveta raramente aberta. Recebeu o título de herói por salvar a
pátria amada. Mas sua alma se foi.
No geral, só duas
possibilidades de destino existem para os soldados que sobrevivem ao inferno:
ou morrem lá, ou vivem para contar história e morrer em outro lugar. Meu avô
sobreviveu. E contou histórias inacreditáveis até o último segundo. Até não
aguentar mais. Frederick Jenkins viveu a maior parte dos seus noventa e cinco
anos apenas existindo e contando histórias. Ele precisava falar para não
enlouquecer. Desde que voltou da guerra, ouvi dizerem, nunca mais foi o mesmo.
Ria, brincava, amava, contava piadas, mas não do mesmo modo. Algo faltava nele.
Algo que lhe fora arrancado pelas pessoas que o mandaram à batalha enquanto seu
filho mais velho ainda crescia no ventre da esposa.
Senti isso em minha própria
pele quando ele começou a falar, pela última vez, de como foram os anos
passados em campos de batalha. Era como se a lucidez houvesse abandonado de vez
sua cabeça por alguns instantes e tudo o que ele pudesse ver fosse o lugar
assustador onde esteve. A espera pela morte certa, a esperança inexistente de
dizer um “eu te amo” ao filho antes de sucumbir, ver diversos companheiros e
oponentes caírem ao chão antecipando o seu próprio destino... Todos os pelos do
meu corpo se eriçaram com a emoção que havia em suas palavras de moribundo. E o
pior: ser o culpado por aquilo. Não que a guerra fosse culpa dele, a guerra é
culpa, meu avô me disse uma vez, dos "cuzões" que sentam seus rabos
em cadeiras confortáveis e assistem, de longe, a chacina, intocáveis em todos
os sentidos.
Nunca vou me esquecer dos
olhos cheios de uma emoção fervorosa que se transformava em lágrimas não
derramadas enquanto as palavras saiam de sua boca. Como se ele e os comandantes
do circo do terror estivessem frente a frente. Todo o ódio firmemente controlado,
vinha à tona bem na minha frente. Nunca imaginei que por trás daquele homem
distante e às vezes melancólico pudesse existir tanto ódio por uma atitude
imposta que, mais tarde descobri, destruiu sua vida, suas noites de sono e, em
parte, nossa família.
Meu avô contou das noites
sem dormir, dos pesadelos, das lembranças amargas, dos corpos mutilados,
ensanguentados, da saudade, da dor, do desespero que não poderia existir, dos
psiquiatras, médicos, enfermeiras, da angustia, do peso das armas, do barulho
dos tanques, do som desesperado da morte, do cheiro, do gosto do gatilho
pressionando seu dedo... Cada detalhe assustadoramente visível em minha mente.
Eternamente gravado em sua alma já esgotada.
Descreveu também, com imenso
pesar, as crianças e mulheres que encontrava no caminho. Da dor nos olhos das
mães desesperadas por dar um pouco de comida aos filhos, das doenças que os
assolavam, de alguns que comiam a carne dos corpos espalhados pelo chão... Sua
esposa, minha avó, poderia ser uma delas.
Para o velho Jenkins, quem
viu o que ele viu, não merece viver tanto. Mesmo o pior dos homens não merece
um sofrimento tão grande. Conviver com os horrores de uma guerra pelo resto da
vida é quase tão ruim quanto estar lá para ver de perto. A única coisa que havia
mudado era que o perigo não era mais físico, mas sim psicológico.
“Depois
de um tempo a gente até se acostuma com aquilo tudo e chega a desejar que o
mesmo aconteça conosco. Algo na morte nos acalma. É melhor participar do que
assistir todo o espetáculo de camarote.”
Obviamente, o velho Fred não
teve essa sorte. Sobreviveu para contar tudo o que viu. Imagino o que
aconteceria se ele não conseguisse colocar tudo para fora... Talvez sua alma
quebrada ficasse completamente destruída se meu avô não tivesse alguma válvula
de escape. Se no início ele não conseguia nem falar sobre o que viu, em seus
últimos dias ouvi a amarga ironia sair de seus lábios o tempo inteiro, até
enquanto dormia. Ele sabia que chegava perto do fim. E isso o alegrava.
Meu avô se foi, mas, por
mais estranho que possa parecer, não fiquei triste. Pelo menos não tão triste
quanto eu pensei que ficaria. Fiquei ao seu lado em seus últimos dias, eu
estava lá para ouvir suas palavras cansadas, para ver seus gestos exaustos e
ver o brilho em seu olhar meio morto. Vi de perto o quanto ele desejava por
isso. O quanto precisava de um descanso. Quanto tempo mais ele aguentaria
passar sozinho, com suas próprias memórias?
Mesmo com todas as
histórias, todos os momentos juntos, a primeira coisa que recordo ao ouvir seu
nome é da última vez que ouvi sua voz.
“Eu
já morri, meu neto. Há anos, minha morte foi sentenciada e aconteceu enquanto
eu atirava em algum dos meus semelhantes. Foi mais lenta e dolorosa do que
qualquer pessoa pode imaginar. E, honestamente, jovem Fred, eu não quero que
alguém me entenda. Não quero que tudo o que eu vi seja visto por mais ninguém.
Não lamente por mim. Apenas fique feliz por eu ter encontrado, finalmente, a
paz.”
0 comentários :
Postar um comentário