Conto - Últimas palavras

domingo, 26 de abril de 2015

Conto - Últimas palavras


Independentemente de terem sobrevivido ou não, são heróis. Heróis por livre e espontânea pressão. Mas ninguém lembra seus nomes ou conhece suas diferentes personalidades. Ninguém quer mesmo saber disso. O que importa é que eles foram até o campo de batalha e venceram. Lutaram para que alguma coisa grandiosa destruísse o mundo em nome da paz. Nada mais.

Numa parede qualquer, há um quadro com o seu nome gravado. Alguma medalha empoeirada que algum dos parentes guardou numa gaveta raramente aberta. Recebeu o título de herói por salvar a pátria amada. Mas sua alma se foi.

No geral, só duas possibilidades de destino existem para os soldados que sobrevivem ao inferno: ou morrem lá, ou vivem para contar história e morrer em outro lugar. Meu avô sobreviveu. E contou histórias inacreditáveis até o último segundo. Até não aguentar mais. Frederick Jenkins viveu a maior parte dos seus noventa e cinco anos apenas existindo e contando histórias. Ele precisava falar para não enlouquecer. Desde que voltou da guerra, ouvi dizerem, nunca mais foi o mesmo. Ria, brincava, amava, contava piadas, mas não do mesmo modo. Algo faltava nele. Algo que lhe fora arrancado pelas pessoas que o mandaram à batalha enquanto seu filho mais velho ainda crescia no ventre da esposa.

Senti isso em minha própria pele quando ele começou a falar, pela última vez, de como foram os anos passados em campos de batalha. Era como se a lucidez houvesse abandonado de vez sua cabeça por alguns instantes e tudo o que ele pudesse ver fosse o lugar assustador onde esteve. A espera pela morte certa, a esperança inexistente de dizer um “eu te amo” ao filho antes de sucumbir, ver diversos companheiros e oponentes caírem ao chão antecipando o seu próprio destino... Todos os pelos do meu corpo se eriçaram com a emoção que havia em suas palavras de moribundo. E o pior: ser o culpado por aquilo. Não que a guerra fosse culpa dele, a guerra é culpa, meu avô me disse uma vez, dos "cuzões" que sentam seus rabos em cadeiras confortáveis e assistem, de longe, a chacina, intocáveis em todos os sentidos.

Nunca vou me esquecer dos olhos cheios de uma emoção fervorosa que se transformava em lágrimas não derramadas enquanto as palavras saiam de sua boca. Como se ele e os comandantes do circo do terror estivessem frente a frente. Todo o ódio firmemente controlado, vinha à tona bem na minha frente. Nunca imaginei que por trás daquele homem distante e às vezes melancólico pudesse existir tanto ódio por uma atitude imposta que, mais tarde descobri, destruiu sua vida, suas noites de sono e, em parte, nossa família.

Meu avô contou das noites sem dormir, dos pesadelos, das lembranças amargas, dos corpos mutilados, ensanguentados, da saudade, da dor, do desespero que não poderia existir, dos psiquiatras, médicos, enfermeiras, da angustia, do peso das armas, do barulho dos tanques, do som desesperado da morte, do cheiro, do gosto do gatilho pressionando seu dedo... Cada detalhe assustadoramente visível em minha mente. Eternamente gravado em sua alma já esgotada.

Descreveu também, com imenso pesar, as crianças e mulheres que encontrava no caminho. Da dor nos olhos das mães desesperadas por dar um pouco de comida aos filhos, das doenças que os assolavam, de alguns que comiam a carne dos corpos espalhados pelo chão... Sua esposa, minha avó, poderia ser uma delas.

Para o velho Jenkins, quem viu o que ele viu, não merece viver tanto. Mesmo o pior dos homens não merece um sofrimento tão grande. Conviver com os horrores de uma guerra pelo resto da vida é quase tão ruim quanto estar lá para ver de perto. A única coisa que havia mudado era que o perigo não era mais físico, mas sim psicológico.

“Depois de um tempo a gente até se acostuma com aquilo tudo e chega a desejar que o mesmo aconteça conosco. Algo na morte nos acalma. É melhor participar do que assistir todo o espetáculo de camarote.”

Obviamente, o velho Fred não teve essa sorte. Sobreviveu para contar tudo o que viu. Imagino o que aconteceria se ele não conseguisse colocar tudo para fora... Talvez sua alma quebrada ficasse completamente destruída se meu avô não tivesse alguma válvula de escape. Se no início ele não conseguia nem falar sobre o que viu, em seus últimos dias ouvi a amarga ironia sair de seus lábios o tempo inteiro, até enquanto dormia. Ele sabia que chegava perto do fim. E isso o alegrava.

Meu avô se foi, mas, por mais estranho que possa parecer, não fiquei triste. Pelo menos não tão triste quanto eu pensei que ficaria. Fiquei ao seu lado em seus últimos dias, eu estava lá para ouvir suas palavras cansadas, para ver seus gestos exaustos e ver o brilho em seu olhar meio morto. Vi de perto o quanto ele desejava por isso. O quanto precisava de um descanso. Quanto tempo mais ele aguentaria passar sozinho, com suas próprias memórias?

Mesmo com todas as histórias, todos os momentos juntos, a primeira coisa que recordo ao ouvir seu nome é da última vez que ouvi sua voz.


“Eu já morri, meu neto. Há anos, minha morte foi sentenciada e aconteceu enquanto eu atirava em algum dos meus semelhantes. Foi mais lenta e dolorosa do que qualquer pessoa pode imaginar. E, honestamente, jovem Fred, eu não quero que alguém me entenda. Não quero que tudo o que eu vi seja visto por mais ninguém. Não lamente por mim. Apenas fique feliz por eu ter encontrado, finalmente, a paz.”

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