Obsessão

sábado, 24 de janeiro de 2015

Obsessão


A sala por trás do espelho estava lotada de pessoas. Entre elas, o promotor de justiça Lucius Abdala e sua filha, Anne Marie Abdala, que era repórter em ascensão de um dos principais jornais do estado. Além do detetive Jones e diversos outros agentes da lei com cargos superiores.

- Há quanto tempo ele está lá? – Lucius perguntou, quando terminou de falar com o advogado da sua família pelo celular.

- Umas duas, três horas... E não para de murmurar coisas sem sentido. - Jones estava em seu primeiro caso que teve impacto nas mídias sociais e ainda estava meio perdido por ter descoberto o autor do assassinato de cerca de vinte pessoas. O irônico daquilo tudo é que o garoto de dezessete anos foi pego tentando roubar um banco com uma máscara de palhaço medonha. A lógica daquilo tudo, ele não conhecia. Na verdade, não sabia nem se aquelas coisas todas faziam algum sentido.

- Eu não consigo acreditar numa coisa dessas... - O outro homem começou a andar de um lado ao outro enquanto o detetive o observava atentamente.

"Não... O irônico não é o garoto ser pego assaltando um banco...", Jones pensou, enquanto observava o promotor Lucius despentear, loucamente, os cabelos claros. Anne Marie, ao seu lado, estava tensa e atenta a qualquer movimento de qualquer pessoa na sala. Ao contrário do pai, a moça estava em perfeito alinhamento, sem um fio de cabelo sequer fora do lugar.

“Cada um sofre da maneira que lhe faz bem...”, o detetive continuou suas divagações a respeito da excêntrica família Abdala por mais algum tempo, enquanto todos ao seu redor trocavam diferentes impressões sobre o caso.

Seus pensamentos foram interrompidos pela entrada de dois policiais fardados que acompanhavam um homem perfeitamente alinhado. O advogado do diabo encarnado, que cumprimentou apenas pai e filha, ignorando completamente as outras pessoas.

- Então podemos começar? - Jones ignorou o estremecimento de Lucius. Em seu lugar, estaria tão nervoso quanto o promotor. Ou mais, talvez.

- Ainda não. – Josh Patterson, o advogado, olhou o homem loiro com expressão perdida enquanto falava. - Eu preciso conversar com o meu cliente.
Anne Marie soltou uma risada curta e áspera enquanto o pai afrouxava, novamente, o nó da gravata já amassada.

- Não acho que vá adiantar alguma coisa. – O promotor respondeu e sentiu mais um estremecimento tomar conta do seu corpo. Não sabia quanto tempo mais aguentaria aquela loucura.

- Mas é um direito dele. Fique à vontade. - Henri Jones indicou a sala de interrogatório com um gesto de cabeça e o advogado entrou. – Anne Marie...

- Eu sei. É o convencional “nada de repórteres no interrogatório”. – Ela balançou a cabeça e disse, antes de ir embora da delegacia: - Te vejo mais tarde, detetive.

– Era mais do que uma promessa, era um fato.

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Dentro da sala cinzenta de interrogatório, Lucius estava prestes a desmaiar enquanto ouvia Jones recitar todos os direitos do acusado: seu filho.

- Senhor Eric Abdala... - Os olhos azuis do garoto foram do advogado ao detetive. Em momento algum olhou para Lucius. Um golpe de sorte, Jones esperava. - Es...

- Antes de começar com a palhaçada, eu quero que o advogado saia da sala.

- O que?! - Lucius se sentou de frente para o filho quando escutou tamanho disparate. Suas pernas não aguentariam mais sustentar seu próprio corpo. Não sabia nem se sua cabeça continuaria sã depois de tantas coisas acontecendo por causa do seu filho, mas ele não poderia simplesmente ignorar o mundo que explodia ao seu redor.

- Eu renuncio ao meu direito de ter um advogado.

- Podemos alegar insanidade mental, promotor. – O advogado disse, mas foi ignorado.

- Ficou maluco, garoto?! - Lucius Abdala socou a mesa, perdendo seu férreo controle.

- É um direito dele, promotor. - Jones lembrou-o de que, naquele momento, não era o pai. Era o promotor e seu dever era interrogar o suspeito. Mesmo que tal suspeito fosse seu próprio filho.

Uma batida na porta da sala de interrogatório foi ouvida e mais um homem entrou.

- O que foi agora? - Jones já estava impaciente. Quanto tempo mais demorariam para começar o interrogatório? Ele só queria que aquele monstro fosse morto ou, no mínimo, preso pelo resto da vida.

- Vim acompanhar o caso, detetive. Posso? - O tom irônico de Jamie Dewes costumava agradá-lo, mas, naquele momento, Jones sentiu vontade de arrancar o pescoço do outro promotor. - Lucius não é o promotor ideal para o caso.
Disso ninguém poderia discordar.

Com alguns protestos movidos aos honorários que perderia, o advogado saiu da sala silenciosamente e restaram os três agentes da lei e Eric Abdala.

Finalmente, para a alegria de Jones e tortura de Lucius, eles poderiam começar.

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- Alice Altmayer. - Henri Jones colocou a foto de uma garota loira sorridente em cima da mesa. - Lembra-se dela?

- Não. - O garoto havia concordado em falar sobre os assassinatos. Admitira que o roubo fora frustrado, mas sorriu quando lhe foi falado das mortes. Um sorriso que lançou farpas de gelo pela coluna do pai. Era como se ele se orgulhasse de ter matado dezenas de pessoas inocentes, como se esperasse por um prêmio.
Dewes e Abdala estavam de pé, cada um de um lado da mesa, enquanto o detetive e o garoto estavam sentados frente a frente, dissertando sobre pessoas assassinadas por um lunático como se isso fosse a coisa mais normal do mundo.

- E agora? - Lucius pegou a foto que foi tirada na mesa de autópsia. A garota estava completamente queimada. Nada que pudesse ser semelhante à primeira foto. - Só a identificamos pela arcada dentária, Eric. - O olhar cruel não desviava em nenhum momento do filho. Filho? O que ele havia criado? Será que Lucius poderia chamar aquele ser asqueroso de filho?

- Ah sim... - O sorriso nos lábios de Eric aumentou e seu pai teve que usar seu mais férreo controle para não socá-lo ali mesmo. - Alice Altmayer... Lembrei-me.

- Por que a matou? - Jamie rodeou a mesa para ficar ao lado do outro promotor. Uma lembrança de quem ele era e de que não podia perder o controle.

- Porque eu quis.

- Ah claro! - A onda negra de sarcasmo quase podia ser vista na sala. - Eu vejo uma pessoa na rua e quero matá-la. Isso é o suficiente para que eu exploda seu dormitório da faculdade!

- Sou um cara de gostos simples. - Os olhos azuis, tão iguais aos do pai, não deixaram de fitar Dewes em momento algum. - Gosto de dinamite, pólvora, gasolina. Sabe o que essas três coisas têm em comum? - Ele se levantou e apoiou as mãos na mesa. - São baratas.

- Isso não responde a minha pergunta.

- Sinto muito, então, mas acho que não posso respondê-la com o que deseja.

Aquele garoto era louco. Era a única explicação que fazia sentido para o detetive Jones.

- Pois bem... Elaine Bartzen. - O detetive colocou a foto de outra garota na mesa. Nenhuma reação de Eric. Pegou mais uma e a mostrou. Não se surpreendeu quando um feixe de reconhecimento iluminou os olhos azuis.

- Ela não sorria... - O tom de voz era quase pesaroso. O balançar de um lado ao outro da cabeça quase poderia ser confundido com arrependimento. - E o garoto... Ele queria que a namoradinha sorrisse...

Os três pares de olhos se arregalaram.

- Eric... - Lucius engoliu em seco. - Você...

- Anda vendo filmes demais. - Jamie disse, ainda boquiaberto.

Henri apenas encarou-o sem conseguir acreditar.

Seria cômico se não fosse tragicamente doentio.

Jones poderia cair na gargalhada se o sorriso que o encarava na fotografia da autópsia não fosse uma mistura de carne, sangue e morte.

- O que você é? - Jamie perguntou. Mas ele não esperava nenhuma resposta. Não nenhuma que fizesse sentido.

Eu sou o agente do caos. E sabe qual é a chave do caos? - Jones conhecia aquela frase. Conhecia a metodologia insana para matar. Dewes tinha razão ao dizer que ele via filmes demais. - O medo.

Lucius se lembrou do que o médico legista lhe disse sobre aquela ser uma das coisas mais brutais que ele já havia visto. Se lembrou da expressão de medo que havia nos olhos dele. E sentiu nojo. Nojo do filho. Nojo de si mesmo por ter criado uma aberração.

- Sabe... - Eric inclinou sua cadeira para trás e fez um movimento com a boca ao melhor estilo "Heath Ledger". - Eu vou falar um pouco sobre essa... A... Como é mesmo o nome dela?

- Elaine. - Dewes não fazia a mínima ideia de como, mas conseguira falar.

- Elaine. - Um aceno de cabeça em concordância e mais um olhar, na tentativa de ser furtivo, aos três homens. - Ela era mesmo uma gracinha... - Os três esperaram. Não por realmente querer esperar, mas por que algum tipo de curiosidade macabra havia paralisado seus corpos. Como se aquilo fosse um filme de terror barato, mas que eles não conseguiam desviar a atenção por qualquer motivo além da compreensão humana. - Ela merecia mais do que um tiro na cabeça. E eu lhe proporcionei isso.

A lembrança do relatório da autopsia invadiu as três mentes chocadas. Os vários cortes nos lugares certos... Cada nervo, a profundidade perfeita para que a vítima chegasse ao limite da dor antes de morrer. Um trabalho torturante, frio e muito, muito paciente.

Sabe por que uso facas? Armas são rápidas demais. - Mais uma frase decorada, Jones pensou. Nunca sequer imaginou que sua paixão pelo coringa o levaria à algo assim. Mais uma morte planejada. Algo lhe dizia que ele previra aquele momento e o modo exato como ele se desenrolaria. - E... Se você é bom numa coisa, nunca faça de graça.

- Você cobrou pra fazer algo assim?! - Lucius Abdala nem sabia dizer o que o chocava mais. O modo brutal como a garota foi morta, o olhar calmo na face do próprio filho... Nada daquilo era normal. Ele não queria acreditar em nada do que ouvia.

- Aquela outra garota... A ruiva. A amiga dessa aí... Como é o nome?

- Catharina Falk. - Jones disse sem hesitar. Não precisaria pegar a foto para se lembrar.

- É. Deve ser isso. Ela pediu para que amiga recebesse o troco por roubar seu namorado.

- Eu... Eu preciso vomitar. - Lucius saiu, apressado e trôpego, da sala.

- Bom... - Eric continuou atraindo a atenção dos outros novamente para si. - Os pais diziam que ela era uma boa garota... Mas ela queria a amiga morta. Então... As pessoas são tão boas quanto o mundo as deixa ser, certo? Com essa não foi diferente.

- Você é louco. - O detetive disse.

- Eu sei! - Uma risada psicótica e estridente preencheu toda a sala surpreendendo os dois homens. - Mas a loucura é como a gravidade, só precisa de um empurrãozinho. - O grito deveria ser previsível. Ele estava imitando seu ídolo, não? Deveria ser previsível o grito, o jeito psicótico, a risada medonha...
Mas não foi. Eles nunca imaginariam aquele tipo de coisa na vida real. - E... O namorado... O namoradinho dessa aí...

- Ele está numa clínica para doentes mentais agora. - Jones disse.

- Wow... Por essa eu não esperava. Então o filho da mãe sobreviveu...

- Não creio que tenha sido uma coisa boa.

O que não nos mata nos torna mais estranhos.

Aquela foi a gota d'água. Henri pegou o garoto pela gola da camisa por cima da mesa e levou-o consigo até apertá-lo contra a parede. O ódio que nublava sua mente não o permitia lembrar de que era um detetive e que interrogava um criminoso. Nenhum cargo ou nenhuma lei poderia pará-lo naquele momento.

- Seu desgraçado!

Mais uma risada histérica passou pelos lábios do garoto loiro despenteado. Era a oportunidade perfeita para mais uma demonstração da sua boa memória.

Você não vai me matar por algum senso de moralismo inadequado. E eu não vou te matar porque você é muito divertido! - O sorriso era carente de qualquer tipo de controle. O olhar tinha um inegável brilho de loucura. - Eu acho que nós dois vamos fazer isto para sempre! Olha que divertido!

- Não se eu te matar antes. - A voz de Lucius fez o corpo do filho estremecer. Nenhum dos três havia visto quando ele voltou à sala. Pelo menos parecia que o pivete tinha medo do pai. Era pelo que Dewes e Jones esperavam ansiosamente.

Você pode se vingar do mal, sem se tornar parte dele, papai?

- Vai se foder!

Antes que o pai sequer tivesse terminado a frase, Eric já estava jogado no chão com o lábio superior cortado por causa do soco.

- Foi você quem me criou. Você me deu os meios, me levou ao cinema... Foi você o culpado pela morte daquelas pessoas.

As palavras travaram seus pés. Lucius olhou para a figura distorcida que antes chamava de filho e tudo o que sentiu foi nojo de si mesmo. Não poderia odiá-lo. Não poderia matá-lo. Mas poderia odiar a si mesmo por ser, em parte, culpado.

- Vai matar seu pai também, Eric? - Perguntou com uma frieza que ele mesmo desconhecia. Talvez o filho tivesse herdado isso dele.

Eu não quero te matar. Você me completa. - O garoto deu de ombro e ele quase acreditou na inocência do olhar. Quase. - É verdade que essa cidade merece uma nova classe de criminosos, mas eu não quero te matar. Você é parte de mim.

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Trecho da reportagem “Obsessão”, por Anne Marie Abdala
Publicado num jornal de grande circulação nacional

Eric Abdala foi diagnosticado com esquizofrenia, psicose e considerado altamente perigoso para a sociedade. Sua obsessão pelo personagem o impediu de ver seu próprio fracasso.

No quarto da clínica para doentes mentais onde foi internado, foram encontradas diversas facas guardadas e uma ao lado do seu corpo. A mais cega dentre todas. Junto ao sorriso da morte feito por ele próprio, estavam suas últimas palavras e mais uma prova do descontrole de sua obsessão.

Um trecho da carta de cinco páginas foi cedido à imprensa e pode ser lido a seguir:

"Aí o tempo para e eu me acalmo, abro os olhos e encaro o mundo. E, pela primeira vez, vejo através dele e entendo a piada: Nada é real.

Às vezes a vida é dura. Você recebe choques e mais choques. Parece que querem derrubar o mundo sobre sua cabeça. Por isso, sempre sorria! Se tiver que morrer, morra sorrindo! Se tiver que matar, mate sorrindo! E sempre coloque um sorriso no rosto das outras pessoas. Nem que, para isso, precise rasgar-lhes a face de orelha a orelha."

Segundo constatações feitas pela própria autora que lhes escreve, Lucius Abdala nunca mais conseguiu falar sobre o filho sem se lembrar da face rasgada que encontrou no quarto e começar a chorar de, segundo o próprio ex-promotor, ódio de si mesmo.

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Henri Jones fez uma careta ao terminar de ler a reportagem. Anne Marie havia se consagrado no ramo investigativo pela matéria que havia feito sobre o irmão mais novo. A maior parte das pessoas não teria coragem de contar a história macabra do próprio irmão. Mas os Abdala estavam longe de ser uma família comum. Lucius havia se aposentado e tentava conviver com a morte do filho, sua esposa entrou em depressão e a filha foi ao topo usando o próprio irmão de escada. No fim, ele estava mesmo certo e cada um sofre do jeito que lhe faz bem.


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