Obsessão
A sala por trás do espelho estava lotada
de pessoas. Entre elas, o promotor de justiça Lucius Abdala e sua filha, Anne
Marie Abdala, que era repórter em ascensão de um dos principais
jornais do estado. Além do detetive Jones e diversos outros agentes da lei com
cargos superiores.
- Há quanto tempo ele está lá? –
Lucius perguntou, quando terminou de falar com o advogado da sua família pelo
celular.
- Umas duas, três horas... E não para
de murmurar coisas sem sentido. - Jones estava em seu primeiro caso que teve
impacto nas mídias sociais e ainda estava meio perdido por ter descoberto o
autor do assassinato de cerca de vinte pessoas. O irônico daquilo tudo é que o
garoto de dezessete anos foi pego tentando roubar um banco com uma máscara de
palhaço medonha. A lógica daquilo tudo, ele não conhecia. Na verdade, não sabia
nem se aquelas coisas todas faziam algum sentido.
- Eu não consigo acreditar numa coisa
dessas... - O outro homem começou a andar de um lado ao outro enquanto o
detetive o observava atentamente.
"Não... O irônico não é o garoto
ser pego assaltando um banco...", Jones pensou, enquanto observava o
promotor Lucius despentear, loucamente, os cabelos claros. Anne Marie, ao seu
lado, estava tensa e atenta a qualquer movimento de qualquer pessoa na sala. Ao
contrário do pai, a moça estava em perfeito alinhamento, sem um fio de cabelo
sequer fora do lugar.
“Cada um sofre da maneira que lhe faz
bem...”, o detetive continuou suas divagações a respeito da excêntrica família
Abdala por mais algum tempo, enquanto todos ao seu redor trocavam diferentes
impressões sobre o caso.
Seus pensamentos foram interrompidos
pela entrada de dois policiais fardados que acompanhavam um homem perfeitamente
alinhado. O advogado do diabo encarnado, que cumprimentou apenas pai e filha,
ignorando completamente as outras pessoas.
- Então podemos começar? - Jones
ignorou o estremecimento de Lucius. Em seu lugar, estaria tão nervoso quanto o
promotor. Ou mais, talvez.
- Ainda não. – Josh Patterson, o
advogado, olhou o homem loiro com expressão perdida enquanto falava. - Eu
preciso conversar com o meu cliente.
Anne Marie soltou uma risada curta e
áspera enquanto o pai afrouxava, novamente, o nó da gravata já amassada.
- Não acho que vá adiantar alguma
coisa. – O promotor respondeu e sentiu mais um estremecimento tomar conta do
seu corpo. Não sabia quanto tempo mais aguentaria aquela loucura.
- Mas é um direito dele.
Fique à vontade. - Henri Jones indicou a sala de interrogatório com um gesto de
cabeça e o advogado entrou. – Anne Marie...
- Eu sei. É o convencional “nada de
repórteres no interrogatório”. – Ela balançou a cabeça e disse, antes de ir
embora da delegacia: - Te vejo mais tarde, detetive.
– Era mais do que uma promessa, era
um fato.
--
Dentro da sala cinzenta de
interrogatório, Lucius estava prestes a desmaiar enquanto ouvia Jones recitar
todos os direitos do acusado: seu filho.
- Senhor Eric Abdala... - Os olhos
azuis do garoto foram do advogado ao detetive. Em momento algum olhou para
Lucius. Um golpe de sorte, Jones esperava. - Es...
- Antes de começar com a palhaçada,
eu quero que o advogado saia da sala.
- O que?! - Lucius se sentou de
frente para o filho quando escutou tamanho disparate. Suas pernas não
aguentariam mais sustentar seu próprio corpo. Não sabia nem se sua cabeça
continuaria sã depois de tantas coisas acontecendo por causa do seu filho, mas
ele não poderia simplesmente ignorar o mundo que explodia ao seu redor.
- Eu renuncio ao meu direito de ter
um advogado.
- Podemos alegar insanidade mental,
promotor. – O advogado disse, mas foi ignorado.
- Ficou maluco, garoto?! - Lucius
Abdala socou a mesa, perdendo seu férreo controle.
- É um direito dele, promotor. -
Jones lembrou-o de que, naquele momento, não era o pai. Era o promotor e seu
dever era interrogar o suspeito. Mesmo que tal suspeito fosse seu próprio
filho.
Uma batida na porta da sala de
interrogatório foi ouvida e mais um homem entrou.
- O que foi agora? - Jones já estava
impaciente. Quanto tempo mais demorariam para começar o interrogatório? Ele só
queria que aquele monstro fosse morto ou, no mínimo, preso pelo resto da vida.
- Vim acompanhar o caso, detetive.
Posso? - O tom irônico de Jamie Dewes costumava agradá-lo, mas, naquele
momento, Jones sentiu vontade de arrancar o pescoço do outro promotor. - Lucius
não é o promotor ideal para o caso.
Disso ninguém poderia discordar.
Com alguns protestos movidos aos honorários
que perderia, o advogado saiu da sala silenciosamente e restaram os três
agentes da lei e Eric Abdala.
Finalmente, para a alegria de Jones e
tortura de Lucius, eles poderiam começar.
--
- Alice Altmayer. - Henri Jones
colocou a foto de uma garota loira sorridente em cima da mesa. - Lembra-se
dela?
- Não. - O garoto havia concordado em
falar sobre os assassinatos. Admitira que o roubo fora frustrado, mas sorriu
quando lhe foi falado das mortes. Um sorriso que lançou farpas de gelo pela
coluna do pai. Era como se ele se orgulhasse de ter matado dezenas de
pessoas inocentes, como se esperasse por um prêmio.
Dewes e Abdala estavam de pé, cada um
de um lado da mesa, enquanto o detetive e o garoto estavam sentados frente a
frente, dissertando sobre pessoas assassinadas por um lunático como se isso
fosse a coisa mais normal do mundo.
- E agora? - Lucius pegou a foto que
foi tirada na mesa de autópsia. A garota estava completamente queimada. Nada
que pudesse ser semelhante à primeira foto. - Só a identificamos pela arcada
dentária, Eric. - O olhar cruel não desviava em nenhum momento do filho. Filho?
O que ele havia criado? Será que Lucius poderia chamar aquele ser asqueroso de
filho?
- Ah sim... - O sorriso nos
lábios de Eric aumentou e seu pai teve que usar seu mais férreo controle
para não socá-lo ali mesmo. - Alice Altmayer... Lembrei-me.
- Por que a matou? - Jamie rodeou a
mesa para ficar ao lado do outro promotor. Uma lembrança de quem ele era e de
que não podia perder o controle.
- Porque eu quis.
- Ah claro! - A onda negra de
sarcasmo quase podia ser vista na sala. - Eu vejo uma pessoa na rua e quero
matá-la. Isso é o suficiente para que eu exploda seu dormitório da faculdade!
- Sou um cara de gostos simples. - Os olhos
azuis, tão iguais aos do pai, não deixaram de fitar Dewes em momento algum. - Gosto
de dinamite, pólvora, gasolina. Sabe o que essas três coisas têm em comum? -
Ele se levantou e apoiou as mãos na mesa. - São baratas.
- Isso não responde a minha pergunta.
- Sinto muito, então, mas acho que
não posso respondê-la com o que deseja.
Aquele garoto era louco. Era a única
explicação que fazia sentido para o detetive Jones.
- Pois bem... Elaine Bartzen. - O
detetive colocou a foto de outra garota na mesa. Nenhuma reação de Eric. Pegou
mais uma e a mostrou. Não se surpreendeu quando um feixe de reconhecimento
iluminou os olhos azuis.
- Ela não sorria... - O tom de voz
era quase pesaroso. O balançar de um lado ao outro da cabeça quase poderia ser
confundido com arrependimento. - E o garoto... Ele queria que a namoradinha
sorrisse...
Os três pares de olhos se
arregalaram.
- Eric... - Lucius engoliu em seco. -
Você...
- Anda vendo filmes demais. - Jamie
disse, ainda boquiaberto.
Henri apenas encarou-o sem conseguir
acreditar.
Seria cômico se não fosse
tragicamente doentio.
Jones poderia cair na gargalhada se o
sorriso que o encarava na fotografia da autópsia não fosse uma mistura de
carne, sangue e morte.
- O que você é? - Jamie perguntou.
Mas ele não esperava nenhuma resposta. Não nenhuma que fizesse sentido.
- Eu sou o agente do caos. E
sabe qual é a chave do caos? - Jones conhecia aquela frase. Conhecia a
metodologia insana para matar. Dewes tinha razão ao dizer que ele via filmes
demais. - O medo.
Lucius se lembrou do que o médico
legista lhe disse sobre aquela ser uma das coisas mais brutais que ele já havia
visto. Se lembrou da expressão de medo que havia nos olhos dele. E sentiu nojo.
Nojo do filho. Nojo de si mesmo por ter criado uma aberração.
- Sabe... - Eric inclinou sua cadeira
para trás e fez um movimento com a boca ao melhor estilo "Heath
Ledger". - Eu vou falar um pouco sobre essa... A... Como é mesmo o nome
dela?
- Elaine. - Dewes não fazia a mínima
ideia de como, mas conseguira falar.
- Elaine. - Um aceno de cabeça em
concordância e mais um olhar, na tentativa de ser furtivo, aos três homens. -
Ela era mesmo uma gracinha... - Os três esperaram. Não por realmente querer
esperar, mas por que algum tipo de curiosidade macabra havia paralisado seus
corpos. Como se aquilo fosse um filme de terror barato, mas que eles não
conseguiam desviar a atenção por qualquer motivo além da compreensão humana. -
Ela merecia mais do que um tiro na cabeça. E eu lhe proporcionei isso.
A lembrança do relatório da autopsia
invadiu as três mentes chocadas. Os vários cortes nos lugares certos... Cada
nervo, a profundidade perfeita para que a vítima chegasse ao limite da dor
antes de morrer. Um trabalho torturante, frio e muito, muito paciente.
- Sabe por que uso facas?
Armas são rápidas demais. - Mais uma frase decorada, Jones pensou. Nunca
sequer imaginou que sua paixão pelo coringa o levaria à algo assim. Mais uma
morte planejada. Algo lhe dizia que ele previra aquele momento e o modo exato
como ele se desenrolaria. - E... Se você é bom numa coisa, nunca faça
de graça.
- Você cobrou pra fazer algo assim?!
- Lucius Abdala nem sabia dizer o que o chocava mais. O modo brutal como a
garota foi morta, o olhar calmo na face do próprio filho... Nada daquilo era
normal. Ele não queria acreditar em nada do que ouvia.
- Aquela outra garota... A ruiva. A
amiga dessa aí... Como é o nome?
- Catharina Falk. - Jones disse sem
hesitar. Não precisaria pegar a foto para se lembrar.
- É. Deve ser isso. Ela pediu para
que amiga recebesse o troco por roubar seu namorado.
- Eu... Eu preciso vomitar. - Lucius
saiu, apressado e trôpego, da sala.
- Bom... - Eric continuou atraindo a
atenção dos outros novamente para si. - Os pais diziam que ela era uma boa
garota... Mas ela queria a amiga morta. Então... As pessoas são tão
boas quanto o mundo as deixa ser, certo? Com essa não foi
diferente.
- Você é louco. - O detetive disse.
- Eu sei! - Uma risada psicótica e
estridente preencheu toda a sala surpreendendo os dois homens. - Mas a
loucura é como a gravidade, só precisa de um empurrãozinho. - O grito
deveria ser previsível. Ele estava imitando seu ídolo, não? Deveria ser
previsível o grito, o jeito psicótico, a risada medonha...
Mas não foi. Eles nunca imaginariam
aquele tipo de coisa na vida real. - E... O namorado... O namoradinho dessa
aí...
- Ele está numa clínica para doentes
mentais agora. - Jones disse.
- Wow... Por essa eu não esperava.
Então o filho da mãe sobreviveu...
- Não creio que tenha sido uma coisa
boa.
- O que não nos mata nos
torna mais estranhos.
Aquela foi a gota d'água. Henri pegou
o garoto pela gola da camisa por cima da mesa e levou-o consigo até apertá-lo contra
a parede. O ódio que nublava sua mente não o permitia lembrar de que era um
detetive e que interrogava um criminoso. Nenhum cargo ou nenhuma lei poderia
pará-lo naquele momento.
- Seu desgraçado!
Mais uma risada histérica passou
pelos lábios do garoto loiro despenteado. Era a oportunidade perfeita para mais
uma demonstração da sua boa memória.
- Você não vai me matar por
algum senso de moralismo inadequado. E eu não vou te matar porque você é muito
divertido! - O sorriso era carente de qualquer tipo de controle. O
olhar tinha um inegável brilho de loucura. - Eu acho que nós dois vamos fazer
isto para sempre! Olha que divertido!
- Não se eu te matar antes. - A voz
de Lucius fez o corpo do filho estremecer. Nenhum dos três havia visto quando
ele voltou à sala. Pelo menos parecia que o pivete tinha medo do pai. Era pelo
que Dewes e Jones esperavam ansiosamente.
- Você pode se vingar do mal,
sem se tornar parte dele, papai?
- Vai se foder!
Antes que o pai sequer tivesse
terminado a frase, Eric já estava jogado no chão com o lábio superior cortado
por causa do soco.
- Foi você quem me criou. Você me deu
os meios, me levou ao cinema... Foi você o culpado pela morte daquelas pessoas.
As palavras travaram seus pés. Lucius
olhou para a figura distorcida que antes chamava de filho e tudo o que sentiu
foi nojo de si mesmo. Não poderia odiá-lo. Não poderia matá-lo. Mas poderia
odiar a si mesmo por ser, em parte, culpado.
- Vai matar seu pai também, Eric? -
Perguntou com uma frieza que ele mesmo desconhecia. Talvez o filho tivesse
herdado isso dele.
- Eu não quero te matar. Você
me completa. - O garoto deu de ombro e ele quase acreditou na inocência do
olhar. Quase. - É verdade que essa cidade merece uma nova classe de
criminosos, mas eu não quero te matar. Você é parte de mim.
--
Trecho da reportagem “Obsessão”, por
Anne Marie Abdala
Publicado num jornal de grande
circulação nacional
Eric Abdala foi diagnosticado com
esquizofrenia, psicose e considerado altamente perigoso para a sociedade. Sua
obsessão pelo personagem o impediu de ver seu próprio fracasso.
No quarto da clínica para doentes
mentais onde foi internado, foram encontradas diversas facas guardadas e uma ao
lado do seu corpo. A mais cega dentre todas. Junto ao sorriso da morte feito
por ele próprio, estavam suas últimas palavras e mais uma prova do descontrole
de sua obsessão.
Um trecho da carta de cinco páginas
foi cedido à imprensa e pode ser lido a seguir:
"Aí o tempo para e eu me acalmo,
abro os olhos e encaro o mundo. E, pela primeira vez, vejo através dele e
entendo a piada: Nada é real.
Às vezes a vida é dura. Você recebe
choques e mais choques. Parece que querem derrubar o mundo sobre sua cabeça.
Por isso, sempre sorria! Se tiver que morrer, morra sorrindo! Se
tiver que matar, mate sorrindo! E sempre coloque um sorriso no
rosto das outras pessoas. Nem que, para isso, precise rasgar-lhes a
face de orelha a orelha."
Segundo constatações feitas pela
própria autora que lhes escreve, Lucius Abdala nunca mais conseguiu falar sobre
o filho sem se lembrar da face rasgada que encontrou no quarto e começar a
chorar de, segundo o próprio ex-promotor, ódio de si mesmo.
--
Henri Jones fez uma careta ao
terminar de ler a reportagem. Anne Marie havia se consagrado no ramo
investigativo pela matéria que havia feito sobre o irmão mais novo. A maior
parte das pessoas não teria coragem de contar a história macabra do próprio
irmão. Mas os Abdala estavam longe de ser uma família comum. Lucius havia se
aposentado e tentava conviver com a morte do filho, sua esposa entrou em
depressão e a filha foi ao topo usando o próprio irmão de escada. No fim, ele
estava mesmo certo e cada um sofre do jeito que lhe faz bem.
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